Lideranças evangélicas por liberdade, democracia e paz

Ao dizermos liberdade, democracia e paz, afirmarmos certos valores, princípios e pressupostos da nossa fé comum – católica, apostólica, reformada, evangélica –, que regem a nossa consciência, a ética e a prática da fé, o nosso fazer político e o nosso engajamento social.

Lideranças evangélicas por liberdade, democracia e paz

Nas últimas eleições acompanhamos e repercutimos a busca pelo voto dos evangélicos e o posicionamento de lideranças do segmento sobre a disputa. O texto que segue, de autoria do pastor Lyndon de Araújo Santos, é um registro daquele momento, que se deu na forma de um discurso em defesa da democracia na sede da ABI. O discurso apresenta ainda uma reflexão sobre os evangélicos e a modernidade.


Viemos aqui hoje reafirmar a liberdade, a democracia e a paz.

E o fazemos desde um lugar específico como protestantes evangélicos no Brasil, sendo nós lideranças eclesiásticas, pastores e pastoras, estudantes, professores, pesquisadores, profissionais, trabalhadores e trabalhadoras, inseridos/as numa conjuntura que muito nos afeta diretamente, de evidente ameaça, retrocesso e arbítrio.

Bom seria que a sociedade brasileira atentasse para uma manifestação como essa, que reivindica um olhar diferenciado para com o segmento evangélico, muitas vezes tomado erroneamente como um conjunto uniforme em suas manifestações de intolerância, de negacionismo, de racismo religioso e de fundamentalismo.

Estamos aqui em solidariedade ao Pr. Sérgio Dusilek e a tantas outras lideranças que sofreram perseguições, calúnias, cancelamentos e, principalmente, o cerceamento da liberdade de expressar seu pensamento e sua posição política.

Estamos aqui repudiando o aparelhamento institucional/denominacional do protestantismo brasileiro, como estruturas de poder, de quadros e como linhas de transmissão da lógica autoritária em curso, do espírito antiprotestante, daí também antidemocrático, para fins de vigilância, de cerceamento, de perseguição e de manipulação das consciências, usando o discurso religioso como plataforma contemporânea e atualizada do voto de cabresto.

Sobretudo, o fazemos como irmãs e irmãos em Cristo, na amorosa comunhão e fraternal solidariedade de uns para com os outros, unidos pela “fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos” e no ecumênico compromisso de unidade do Corpo de Cristo, a favor da justiça social, na plenitude “do pão, do sonho e do corpo” (Eduardo Hoornaert).

Ao dizermos liberdade, democracia e paz, afirmarmos certos valores, princípios e pressupostos da nossa fé comum – católica, apostólica, reformada, evangélica –, que regem a nossa consciência, a ética e a prática da fé, o nosso fazer político e o nosso engajamento social.

Reafirmamos, portanto, um conjunto de legados espirituais deixados pelos muitos cristianismos do passado, que passaram pela Reforma Protestante do século XVI, a qual, mesmo em meio a muitas contradições em sua experiência histórica concreta, infundiu, dentro da vasta e complexa tradição ocidental, linguagens, semânticas e enunciados religiosos e teológicos, que foram traduzidos em atitudes políticas libertárias, os quais precisam ser trazidos e atualizados ao nosso contexto atual.

A justificação pela fé, a autoridade das escrituras, a exclusividade da salvação pela mediação exclusiva de Cristo e a glória dada somente a Deus, foram discursos reformadores e, por que não, revolucionários, para aquele contexto europeu, num século de transformações que definitivamente determinaram o vir a ser da humanidade.

Aqueles pressupostos afetaram estruturalmente as relações sociais, religiosas, políticas, econômicas e culturais da época. E, cada uma das grandes tradições reformadas que surgiram desse evento reproduziu esses discursos de verdade nos diferentes contextos nacionais, regionais e locais, desde as principais matrizes dos luteranos, calvinistas, anglicanos e anabatistas.

Mas o intuito aqui não é a reificação de um evento histórico em si e nem a identificação de superioridade de uma tradição sobre a outra. Muito menos atestar uma verdade única em sua interpretação. Sabemos o que cremos e em quem cremos!

A Reforma e toda a sua vasta e múltipla experiência, foi um fim/início de processos anteriores e que gerou processos novos até aos nossos dias.

Pois, não podemos falar de democracia, de liberdade, paz e de tolerância; de estado laico, de bem público e de constituição; de consciência e de individualidade; de espiritualidade e de subjetividade; de educação (leitura, alfabetização), de arte, de música, de literatura, de direito e de cultura; de diversidade, de direitos e de dignidade humana, de meio ambiente e de ciência, sem a afinidade de fundo entre o protestantismo e a modernidade ocidental, conforme Ernst Troeltsch.

A democracia liberal (da direita capitalista), por um lado, e a democracia social (da esquerda socialista), por outro, passando pela mediação social-democrata de centro em trânsito de um espectro para o outro, contaram com o influxo determinante do pensamento teológico, social e político protestante, mesmo sob o iluminismo racionalista que o estruturou.

O protestantismo, ao defender a liberdade religiosa e a existência de confissões distintas, ao propor a diversidade de modelos eclesiais (denominações) e a laicidade da política, da cultura, da educação e da ciência, contribuiu para a concepção e o advento de uma sociedade democrática e plural.

Contudo, essa história não é linear e nem harmônica. Há contradições e retrocessos. Há responsabilidades e culpas em muitos acontecimentos que tiveram a fé reformada como protagonista, desde processos inquisitoriais, perseguições, expurgos, exclusões. Listarei alguns:

· O massacre dos camponeses anabatistas na Alemanha no século XVI,

· As guerras religiosas entre protestantes e católicos;

· A violência das revoluções inglesas no século XVII,

· A guerra dos Boers na África do Sul no século XIX e o massacre das populações nativas;

· O apartheid na África do Sul no século XX,

· O racismo e os linchamentos públicos da Ku Klux Klan nos Estados Unidos,

· O perverso imperialismo inglês na África e na Índia durante mais de século e meio,

· O fundamentalismo reacionário da novadireita estadunidense;

· O apoio dos evangélicos ao golpe militar e o denuncismo de irmãos e irmãs protestantes durante ditadura civil-militar;

· A aliança de recíproca cooptação entre um governo de extrema direita e as empresas religiosas-midiáticas, as estruturas eclesiásticas e as lideranças políticas evangélicas.

Todos esses e muitos outros eventos negativos de violência e de exploração, carregam a marca de um tipo de religião instrumentalizada pelas forças da dominação política e econômica, que negam o princípio protestantee o próprio Evangelho do Reino.

Por outro lado, falo desde a perspectiva de um historiador e de um cristão, suspeitando que nesse arco protestante reformado, existiu e ainda subsiste a força irreversível da proposta libertária, igualitária e de uma vivência cristã pacífica e pacifista, mais comprometida com os pobres, com a terra, com as mulheres, com as crianças, com os negros, com os indígenas, com os povos originários, com o meio ambiente, com as liberdades individuais e com a democracia, com a justiça social, com o ecumenismo e com o diálogo interreligioso.

Assim, um conjunto de experiências de matriz protestante evangélica nos inspiram a lutar hoje pela liberdade, pela democracia e pela paz, e a repudiar qualquer manifestação de origem política e religiosa que atente contra elas, seja dirigida a pessoas ou a organizações. Listarei:

· O sacerdócio universal dos santos do luteranismo desconstruiu a ordem medieval na Europa, desmontando o modelo de cristandade opressor;

· A radicalidade anabatista dentro da Reforma ao requereu e lutou pela distribuição de terras sob Thomas Muntzer e Carlstadt, herdeiro dos protestos sociais oriundos dos movimentos heréticos no medievo;

· As experiências quarcker e menonita de um igualitarismo eclesial, pacifista e de solidariedade em pautas sociais, as pressões que fizeram ao anglicano Wilbeforce para o fim do tráfico africano;

· O republicanismo calvinista dos separatistas e presbiterianos em oposição à monarquia semidivinizada anglicana;

· A visão inclusiva e de respeito aos povos nativos do batista Roger Williams na nova Inglaterra do século XVII, comum e próxima à de Barlolomeu de las Casas na América Central, ambos denunciaram os massacres aos povos nativos às cortes europeias;

· O comunitarismo moraviano inclusivo e ecumênico que desembocou no avivamento, depois de uma reforma agrária e muita oração, no início do século XVIII;

· A tradução da Bíblia da Mulher por Elizabeth Cady Stanton e mais uma comissão de 26 mulheres no Estados Unidos;

· A denúncia do regime escravista por Robert Kalley no Brasil oitocentista, ao excluir um proprietário de escravos da Igreja Evangélica Fluminense;

· A prática missionária aos africanos na língua Yorubá de Thomas Bowen, na região portuária do Valongo no Rio de Janeiro;

· A luta pelo reconhecimento do casamento civil e do enterramento em cemitérios públicos de protestantes no império, bandeiras para a liberdade religiosa sob o regime do padroado católico romano, mais tarde pelo voto feminino, a alfabetização, ensino laico nas escolas públicas;

· As redes de sociabilidade das comunidades pobres pentecostais iniciais, falando as outras línguas da solidariedade em meio à simplicidade e pobreza e do protesto social;

· O evangelho social de Walter Rauschenbush;

· As lutas pelas independências africanas após a segunda guerra que traziam componentes bíblico teológicos protestantes, sincretizados em messianismos libertários e de ancestralidades, a exemplo do movimento quingunzista em Angola;

· A militância pelos direitos humanos do bispo anglicano Desmond Tutu;

· A luta de Martin Luther King pela igualdade racial e pelos direitos civis nos Estados Unidos;

· As comunidades protestantes indígenas na província zapatista de Chiapas no México.

· A presença de evangélicos nas ligas camponesas e hoje no MST.

Tendo, portanto, “a rodear-nos tão grande nuvem de testemunhas”, importa ainda dizer que estamos na esteira de muita gente que lutou pela democracia no Brasil e a elas nos unimos, pois expressaram e lutaram desde um protestantismo lúcido e de relevância social, fazendo as escolhas mais difíceis, pois o caminho sempre foi e continuará sendo estreito: Eduardo Carlos Pereira, Erasmo Braga, Guaraci Silveira, Epaminondas Melo do Amaral, as educadoras e pedagogas como Miss Martha Watts e Judith Tranjan, Davi Malta, Richard Schaull, Rubem Alves, Zwinglio Mota Dias, Anivaldo Padilha, Robinson Cavalcanti, João Dias de Araújo, Jether Pereira Ramalho, o pentecostal Manoel da Conceição.

Estamos na esteira do Movimento de Cooperação e da Confederação Evangélica do Brasil, da Conferência do Nordeste de 1962 com o tema Cristo e o Processo revolucionário brasileiro, das lutas ecumênicas e das resistências ao regime militar.

Estamos na esteira de muitos movimentos evangélicos durante a nova república que se colocaram ao lado da democracia, da liberdade e da paz.

Que esta memória nos traga a esperança dos profetas de que as espadas serão convertidas em relhas de arado, que o juízo correrá como as águas e a justiça como ribeiro perene, que haverá novos céus e nova terra onde habita a justiça, que toda lágrima será enxugada e o reino será definitivamente de justiça, paz e alegria no Espírito Santo. Esse tempo já chegou!

Ao sairmos daqui, precisamos nos preparar e nos mobilizar para uma nova conjuntura que se forma com as eleições, seja qual for o resultado. Estamos num momento decisivo para os rumos da sociedade e do país no século XXI, e o nosso ajuntamento hoje é um sinal e um testemunho de vida, uma boa nova, a de que protestantes evangélicos colocam-se ao lado da liberdade, da democracia e da paz, e contra um futuro distópico e despótico que se apresenta.

Que venha o teu Reino!

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Lyndon de Araújo Santos é Pastor e Historiador. Professor do Depto. de História da UFMA/UFRRJ e do PPGHIS/UFMA.