Louvor evangélico em shopping e o racismo religioso

Louvor evangélico em shopping e o racismo religioso

Coluna - Manuela Löwenthal

Vídeos de pessoas cantando músicas evangélicas em shoppings e mercados pelo Brasil viralizaram nas redes sociais nas últimas semanas. Muitas foram as publicações e mensagens de espanto em relação a este fenômeno aparentemente espontâneo (https://www.youtube.com/watch?v=aDdPfT8m8qM).

Nos vídeos, as pessoas cantam e se emocionam, e a ideia que é transmitida é a de que a cena não foi combinada, e que muitos aderem ao movimento de forma voluntária.

Porém, a cena faz parte de um projeto chamado Projeto IDE de uma famosa igreja chamada Igreja Fonte da Vida. No site oficial da igreja, este projeto faz parte de uma ação de evangelização que pretende ser a maior ação de evangelização do mundo.

Famoso por sua afinidade com o ex-presidente Jair Bolsonaro, o apóstolo e fundador da Igreja Fonte da Vida comemora em suas redes sociais o sucesso do projeto e avisa que a ação irá continuar em todo último sábado do mês.

Muitos internautas compartilharam curiosos os vídeos do louvor generalizado em shoppings, porém, uma questão extremamente pertinente foi levantada: será que a prática teria sido tão aceita se a música cantada tivesse relações com religiões de matriz africana?

Tal questionamento é bastante coerente considerando a receptividade que há em relação às manifestações públicas de religiosidade vinculada às religiões de matriz africana, como foi o caso de alguns acontecimentos e falas ocorridas no programa Big Brother, no qual alguns participantes se diziam “aterrorizados” ao ver outro participante, que é candomblecista, rezar.

Outro fato recente que expressa de forma bastante evidente a intolerância religiosa aconteceu na última semana em Salvador, quando o cantor Emicida publicou um vídeo contando que o seu livro infantil “Amoras” foi alvo de intolerância religiosa praticado por uma mãe de um aluno em uma escola particular da cidade. (https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/03/07/livro-infantil-de-emicida-e-alvo-de-intolerancia-religiosa-praticada-por-mae-de-aluno-em-escola-de-salvador.ghtml). A mãe riscou diversas páginas do livro com passagens de salmos bíblicos, acusando que informações sobre orixás eram falsas e demoníacas.

O livro conta a história de uma menina negra que está aprendendo a se reconhecer no mundo. Em conversas com seu pai, ela tem acesso a conhecimentos ligados às culturas e religiões diferentes, além de ser apresentada a grandes ícones das lutas dos povos negros, como Zumbi, Martin Luther King e Malcolm X.

Este “medo”, “terror”, “estranhamento” que muitas pessoas dizem sentir ao ver manifestações de fé ligadas às religiões de matriz africana diz muito sobre a história do Brasil, uma história marcada pelo apagamento e discriminação de toda e qualquer tradição da cultura negra. Fatos que expressam tal intolerância remontam ao passado escravocrata do nosso país, um passado racista que até hoje ecoa nas nossas relações sociais. O país foi construído a partir de relações de poder e discriminação racial, escravidão e hierarquias, logo, tais intolerâncias religiosas possuem também caráter de discriminação racial.

A sociedade brasileira foi estruturada de tal forma que nela enraizou-se a ideia de que tudo que é produzido pela cultura negra é desvalorizado, considerado estranho, exótico, folclórico, e este discurso vêm sendo bastante fortalecido por alguns grupos de fundamentalistas neopentecostais que estimulam a visão de que a religião de matriz africana faz o mal ou está ligada ao culto ao demônio.

Nesse sentido, debater, discutir, problematizar tais cenas e questões é essencial, pois evidencia o problema, além de pressionar Estados e o Governo Federal para a implementação de políticas públicas efetivas contra o racismo religioso, assim como tem a função de cobrar a execução da legislação já existente que caracteriza o crime de intolerância religiosa.

Além disso, cabe a cada um de nós rever, repensar, questionar, estudar e se informar sobre temas e situações como as citadas acima, que infelizmente são bastante comuns na sociedade brasileira. O conhecimento é a arma mais eficaz contra o preconceito.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Manuela Löwenthal é Doutoranda em Ciências Sociais pela UNIFESP, pesquisa temas vinculados à Religião e Política no Brasil. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (2012), onde também obteve o título de mestre. É pesquisadora  do projeto Temático "Religião, Direito e Secularismo: A reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo", financiado pela FAPESP.  Atua também como Professora de Sociologia na Rede Estadual Paulista.