Marcos Almeida e as Canções pra Morar em Tempos Difíceis

Marcos Almeida e as Canções pra Morar em Tempos Difíceis
Marcos Almeida

“A música pode tornar as coisas menos difíceis”, diz Marcos Almeida, que iniciou o projeto “Canções pra Morar em Tempos Difíceis” no ano passado. Quem acompanha a obra do artista mineiro Marcos Almeida desde a época do Palavrantiga, sabe de sua fé na música. Além de pensar e articular questões relacionadas à relação entre cristianismo e cultura brasileira, Marcos sempre teve como matéria prima de suas composições a confiança de que “a música pode fazer muitas coisas”, como diz.

O projeto é formado por versões de canções do cancioneiro brasileiro. A primeira canção do projeto, “Paciência” (Lenine e Dudu Falcão) saiu em outubro de 2023. E a segunda foi “Tenho Sede” (Dominguinhos e Anastacia) que foi lançada no último dia 17. Outra versão que poderia ser incluída no projeto é a de “Preciso de Ti”, composta por Ana Paula Valadão e grande sucesso com o Diante do Trono, lançada em 2022.
Perguntado sobre essa nova fase como intérprete, Marcos diz: “eu sempre me vi mais como um compositor do que como cantor.” Basta ir a um show de Marcos Almeida e perceber que suas composições estão na ponta da língua de seu público, mas aqui e ali sempre nos deparamos com versões. No Palavrantiga, podíamos ouvir “Todos Estão Surdos” de Roberto e Erasmo Carlos. Ou mesmo “Seja Engrandecido”, de Genésio de Souza.

O ofício de intérprete, porém, para Marcos, não está tão distante assim do trabalho de compositor. A própria escolha das canções “se relaciona intimamente com o lance da minha composição”, diz. Autoria e interpretação seguem critérios comuns: “vou tentando escolher textos, expressões também melódicas, harmônicas, que são do meu agrado, do meu vocabulário, quando eu estou compondo. Então, acho que o que orienta as escolhas é também uma coisa autoral.”

Marcos Almeida faz parte de uma geração de compositores e artistas que exercem uma postura crítica ao mercado gospel. Surgido no fim dos anos 1980, o gospel hoje representa, de acordo com dados do Spotify, mais de 20% da indústria fonográfica no Brasil. Apesar de ser um mercado em constante crescimento, com um aumento de quase 50% em 2022 em comparação ao ano anterior, o gospel é alvo de críticas por parte de artistas que buscam estabelecer novas conexões entre o Brasil e a fé evangélica. No entanto, surge a questão: se não é gospel, qual é o termo apropriado para descrever a música feita por brasileiros evangélicos? O pesquisador Deivison Brito, em sua dissertação de mestrado (2021), propõe alguns termos possíveis, como "música feita por cristãos", "música brasileira de raiz cristã" e "pós-gospel".

Marcos Almeida cunhou uma novilíngua para nomear a música que faz: música brasileira tecida na esperança. Para ele, aprender a falar a língua do “esperancês” é o que permite colocar no mesmo plano artistas de lugares, tempos e credos tão diferentes. “Tem uma coisa interessante no Noam Chomsky de acreditar que tem algumas coisas que são estruturais em todas as línguas do mundo. Eu também acredito que, seja qual for o campo, o mundo, o universo do compositor, ali estará uma base de códigos impossíveis de serem alterados, que são comuns a todos os mundos. E, pra mim, não é estranho colocar na mesma roda Ana Paula [Valadão], Lenine e Dominguinhos.”

Se essa disponibilidade de reconhecer aspectos universais da existência humana como materiais para a criação artística pode parecer uma heresia para muitos, Marcos justifica: “Eu acho que é porque eu me movimento. Esse trânsito, essa graça de atravessar fronteiras e conversar com mundos diferentes que me faz perceber que existe uma linguagem comum que eu chamo de esperancês.”

Coincidência ou não, as três últimas versões lançadas por Marcos Almeida cantam sobre a consciência de uma falta. Em “Preciso de Ti”, a falta de Deus. Em “Paciência”, a falta de serenidade para lidar com a pressa da vida. Em “Tenho Sede”, a falta de água e do amor. Partindo do filósofo dinamarquês Kierkegaard, Marcos diz: “O Kierkegaard falaria que é a angústia, a gente vive nessa escassez, a escassez é a própria condição humana. Eu acho que a vida humana é justamente esse lugar da falta.”

Nascido em um país marcado pela escassez, Marcos Almeida lembra o trabalho do filósofo alemão Ernst Bloch para falar do nosso país: “‘A ainda não é A’, ou seja, a música ainda não é a música, o Brasil ainda não é o Brasil, a minha rua ainda não é a minha rua, eu ainda não sou eu e é isso que move tudo.”
Com o desejo de realizar a utopia de um Brasil abundante, Marcos lembra sua canção “Que Onda”: “quando eu não estou mudando o mundo, eu aproveito o que tá bom”. Assim, ele diz: “E eu acho que o brasileiro faz isso muito bem. Ele sabe dançar, ele sabe festejar enquanto ainda não se realiza essa utopia, né? E uma coisa não impede a outra de acontecer. Isso eu acho que o Brasil pode ensinar para o mundo.”

“Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las”, dizia Mario Quintana em seu poema “Das utopias”. Se os tempos são difíceis, Marcos Almeida nos mostra ser possível sonhar e cantar um mundo melhor.

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Arthur Martins é graduado em Filosofia (UCB) e mestrando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), onde desenvolve pesquisa sobre cultura, música popular e religião. É compositor, músico e cantor do Rio.