Masculinidade no meio evangélico
Recentemente soube de um movimento dentro do meio evangélico brasileiro chamado Machonaria. Um movimento de homens que tenta resgatar uma masculinidade bíblica e cristocêntrica, como remédio para uma sociedade disfuncional. Ao homem macho caberia proteger e prover o necessário para sua família, além de propagar a cultura do reino de Deus nessa terra. Essa cultura tem como alguns de seus valores principais a animosidade, a hombridade e a austeridade. Com eles, o homem deve estar preparado para lutar pela sua família, por seus amigos e pela sociedade. Como o próprio vídeo de divulgação do movimento mostra, com amor, honra e testosterona, sob o símbolo do capacete de um soldado romano, esse homem é capaz de colaborar para promover o reino de Deus na terra.
Está em voga em nossos dias falar sobre o papel dado à mulher dentro de muitas igrejas evangélicas. Submissão, proibição para pregar, papel de auxiliadora, cuidadora da casa, etc. São papéis sociais incorporados em uma cultura de interpretação dos textos bíblicos e muitas igrejas ainda reforçam essa ideia de que a mulher deve ter como prioridade cuidar do seu lar e da sua família.
Vários papeis sociais com os quais convivemos hoje não foram inventados pelo Cristianismo. O filósofo Michel Foucault nos mostra que desde o mundo antigo havia uma separação entre a esfera pública e a privada. O privado, a casa ou oikos, estava reservado à mulher. Esse era o ambiente de produção e reprodução. A mulher tinha como responsabilidades colaborar para o cuidado dos bens materiais da família e também era reconhecida por gerar uma descendência que fosse dar continuidade à sua linhagem.
Ao homem, por sua vez, cabia cuidar dos negócios no espaço público. Não só o de cunho privado, mas também os políticos. Ele era responsável por colaborar para a boa administração da cidade. Era ele quem podia falar me público, exercer posições de comando, interpelar seus pares sobre aquilo que dissesse respeito aos rumos da sociedade.
Essas diferenças em relação aos papeis sociais também interferia, segundo Foucault, na relação amorosa entre o casal. Foucault menciona que ao homem não era recomendado ter uma relação de amor com sua esposa, porque havia uma diferença estrutural entre ambos. Ele, expressão da racionalidade e do espírito, não podia esperar de sua esposa uma relação edificante. Isso acontecia porque a ela faltavam justamente os atributos relacionados a ele. Ela era expressão da materialidade sem forma, das paixões difíceis de dominar. Diante desse desequilíbrio, não seria possível um relacionamento amoroso de mútuo crescimento.
Com isso quero ressaltar que muitos atributos socialmente aceitos para a masculinidade hoje em dia provêm de um diálogo do evangelho com a cultura: o provedor, o protetor. Papéis que no mundo antigo pudessem fazer mais sentido, onde mulheres não estudavam e eram tidas como propriedade do marido. Trazer esse papeis sem a devida crítica para nossos dias pode ser uma armadilha para as pessoas que se dizem discípulas de Cristo. Estariam presas a uma lógica do pater potestas, responsável por governar e proteger sua família e aqueles que o servissem.
Podemos pensar que não só a subjetividade e os corpos das mulheres são formados por relações de saber-poder nos moldes descritos por Foucault. Os homens também sofrem com essa dinâmica. Quando aceitam papeis que em muitos casos não lhes cabe, acabam trazendo para si um fardo que não é seu. Um peso cultural que pode gerar sobrecarga emocional, psicológica e espiritual. Isso, seguramente, influenciará em sua conduta na sociedade, tentando promover o reino de Deus sob o crivo da cultura, mas talvez não do evangelho.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
João Barros é evangélico há mais de 20 anos. Doutor em Filosofia e doutor em Ciências Sociais (UBA-AR), atualmente leciona no Programa de Pós-graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPGICAL) e no curso de Ciência Política e Sociologia da UNILA. É autor de Poder pastoral e cuidado de si em Foucault (2020) e Biopolítica no Brasil – uma ontologia do presente (2022). Também coordena o projeto Evangélicos e política na América Latina. Contato: joao.barros@unila.edu.br .