Estranhamento com a religião do outro é oportunidade de discutir intolerância religiosa

Estranhamento com a religião do outro é oportunidade de discutir intolerância religiosa

Essa semana foi a primeira vez que vi uma mulher de burca na cidade onde vivo. Mesmo abrigando a segunda maior comunidade islâmica do país, ainda não tinha passado por essa experiência. Foi em uma conhecida loja de departamentos. A mãe estava acompanhada de duas crianças com cerca de 5 anos. Uma delas, menina, já usava véu. Outra surpresa. Mulheres de véu são comuns na cidade, já crianças não.

Não foi minha surpresa que me motivou a escrever sobre esse encontro, mas sim o relato de minha filha (8 anos) enquanto voltávamos para casa. Ela disse que a menininha de véu olhou feio para ela a ponto dela se sentir mal. Comecei a pensar sobre a compreensão que muitas pessoas carregam sobre ‘os infiéis’ e como essa compreensão de si e dos outros, quando se trata de fé, pode motivar atitudes de intolerância.

Lembrei de um estudo divulgado essa semana sobre o engajamento de extremistas de direita nas redes sociais. A pesquisa aponta que os oito perfis com maior engajamento são de evangélicos, destacando seu potencial de mobilização. No que concerne à fração da população brasileira, os evangélicos representam em torno de 30%. Já o contingente de extrema direita gira em torno de 10%. Contudo, a capacidade de mobilização destes últimos é inegável. Se antes a extrema-direita não tinha aderência no Brasil por ser associada ao nazismo e à ditadura militar, ao se associar com lideranças evangélicas conseguiu uma base social que lhe proporciona ressoar sua mensagem para meandros do tecido social antes inalcançáveis. Chegou ao chão de fábrica de nossos tempos.

Para que essa aproximação fosse possível, a militância religiosa assumiu um discurso de intolerância e ódio. Guerreando para conquistar corações e mentes, muitas vezes se esquecem das palavras de Paulo (Gl 3.28): “Não há judeus nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus.” Conta o texto bíblico que Paulo escreveu essa carta depois de ser vítima de uma conspiração armada por judeus que se opunham ao seu ministério. Para eles, Paulo atuava contra a Lei de Moisés e, portanto, contra o próprio Deus. Usavam o nome de Deus para perseguir, castigar e tramar a morte de pessoas como ele, assim como fizeram com Jesus.

A verdade que proclamam como libertadora, na realidade representa um grilhão para muitos grupos da sociedade. Não sem razão. Se não é cristão, deve ser combatido e pode até ser difamado. Se faz parte dos evangélicos e não é da minha igreja, não é de Deus. Quem dirá uma pessoa de outra religião.

Voltando à experiência relatada no início, situações como essa podem ser aproveitadas para falar sobre intolerância religiosa. Foi a primeira vez que minha filha se viu nessa posição. Peço a Deus que ela se lembre sempre dessa experiência como fonte de aprendizado, como oportunidade para se colocar na pele do outro, sentir sua dor e buscar acolhê-lo com respeito, mesmo que tenha uma fé diferente da sua. Do mesmo modo, que saiba esperar respeito por sua opção de fé e compreender que não pode ser desvalorizada por isso em contextos seculares.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


João Barros é evangélico há mais de 20 anos. Doutor em Filosofia e doutor em Ciências Sociais (UBA-AR), atualmente leciona no Programa de Pós-graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPGICAL) e no curso de Ciência Política e Sociologia da UNILA. É autor de Poder pastoral e cuidado de si em Foucault (2020) e Biopolítica no Brasil – uma ontologia do presente (2022). Também coordena o projeto Evangélicos e política na América Latina. Contato: joao.barros@unila.edu.br .