Quem é a verdadeira 'mulher virtuosa' de provérbios

Quem é a verdadeira 'mulher virtuosa' de provérbios

Infelizmente, vivenciamos outro mês de maio - o mês ‘clichezento’ das mães, das noivas e das mulheres ‘virtuosas’- sob os mesmos reforços daquela conveniente ideação exógena e socialmente construída que não abarca de forma alguma o chão e a complexidade de nossas vidas. 

Nesta ideação, os discursos sobre as ‘mulheres virtuosas’, aparecem justificados sob as bases de uma interpretação cristalizada e distorcida do texto de Provérbios 31,10. Distorcida sim, porque ali o termo hebraico hayl refere-se à uma mulher de força, uma mulher com diversas habilidades como pode ser observado nos versículos seguintes do mesmo recorte. Entretanto, não podemos deixar de destacar que, ainda que seja uma mulher de força, é uma mulher sobrecarregada. Tudo está nas costas dela. A mulher de Provérbios 31 está muito mais próxima da Maria da canção de Milton Nascimento do que das idealizações de uma mulher de ‘feminilidade bíblica’. Aliás, a expressão “sou feminina, não feminista” parece que virou mote entre algumas mulheres que também definem e propagam a suposta e conveniente feminilidade bíblica. 

Mas que ‘feminilidade bíblica’ é essa? Será que analisam realmente os textos bíblicos? Seria uma feminilidade bíblica a seguir o exemplo de Jael, que mata envenenado Sísera, o comandante do exército (Jz 5)? Ou Deborah, juíza e profetisa, que vai para a guerra, comandando o exército (Jz 4-5)? Ou da assertiva Miriã (Nm 12)?  Ou ainda da questionadora mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30)? Das memórias registradas, há uma multiplicidade de mulheres nos textos bíblicos que não seguem esta idealização cristalizada da ‘mulher virtuosa’. 

Decorre daí que são inegáveis os atritos quando nos referimos às feministas cristãs e às várias teologias contemporâneas como as feministas, transfeministas, queer e afins. 

O senso comum e essa certa leitura cristalizada da Bíblia, que se pretende e se apresenta como hegemônica, afasta o devido senso crítico e impõe a inoperância de vários preceitos da ética cristã sobre as mulheres.  Aquelas - trans, travestis ou cis - de espirít0 e corpos livres, divergentes e que atuam sendo arautas das boas-venturanças, são colocadas em dúvida, tendo suas inteligências e credibilidades menosprezadas. Mas sabemos que o pretenso  ‘modelo’ a ser seguido foi falseado no transcorrer da história e que o contra-ataque estigmatizador existe como mecanismo perverso e pecaminoso, alinhado às várias outras questões complexas de políticas da extrema direita mundial, do sistema econômico hegemônico, do clericalismo judaico-cristão, etc.

Por outro lado, há os espaços de liberdade! Esta é a razão que leva a Associação Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero a promover cultos e as espiritualidades feministas. Firmando nos direitos religiosos das mulheres, construímos estes espaços para que todas elas tenham um lugar para suas próprias construções teológicas, no intuito de desenvolverem suas práticas de fé, cultivar suas redes de apoio, acessar sociabilidades acolhedoras, libertárias, a escuta ativa e empática e promover o cuidado coletivo e as noções de autocuidado. 

E sim, temos esses posicionamentos pois, a partir de vivências orgânicas entre nós, é sabido que a imagem/ideação das mulheres biblicamente virtuosas foram paulatinamente sequestradas para, no âmbito relacional, fazer engolir a seco relacionamentos tóxicos, narcisistas, violentos, infiéis, etc. Como exemplificação é válido registrar que tem pai que afirma publicamente que o nascimento de sua filha é sinônimo de uma 'fraquejada'. 

Decorre daí que assumir os métodos feministas serve também para colocar em relevo que toda a sociedade é afetada quando mulheres são silenciadas ou violadas em seus direitos e suas vozes.  De forma objetiva, precisamos dar ciência de que, afinal, conforme pesquisa Datafolha (2020), o público feminino corresponde a 58% da membresia das igrejas evangélicas.  Uma outra pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (2023), indicou que 11 milhões de mães criam crianças sozinhas nesse Brasil de maioria cristã. 

Precisamos destacar aqui que todos os desenhos de famílias também são afetados e desta forma, os conflitos geracionais se avolumam também nas instituições eclesiásticas. Embora haja exceções em nosso horizonte próximo, podemos, no exercício imagético, questionar a viabilidade existencial de igrejas com o predomínio do clube da machonaria ou do masculino universal no futuro.  Haverá juventude promovendo o bem e a justiça social, segundo a ótica da mensagem de Jesus? O mundo hoje parece se irromper em guerras e está sob a devastação das mudanças climáticas, das trágicas migrações forçadas e a culpa ainda é das feministas?

A super espiritualização da vida não consegue dar respostas para tantas pontas soltas nesse debate. De maneira que afirmar os feminismos de mulheridades de fé é uma posição política, ética, de honradez  e de respeito àquelas mulheres que com suor, sangue e lágrimas nos impulsionaram até aqui. Nesse sentido, defender as chamadas feminilidades bíblicas com o método feminista, sem dar os devidos créditos, sabe se lá por estratégia, por número de likes ou por ingenuidade, se torna algo desastroso. 

Por outro lado, os feminismos das mulheridades de fé, das mulheridades de força, estão aí para nos trazer alento, refrigério para nossos espíritos combalidos por tantas violências. Não sem razão, o mote da Associação para o ano de 2024 “Vai tudo bem contigo? Mulheridades de fé no enfrentamento das violências religiosas e espirituais” faz todo o sentido. E na força das espiritualidades libertárias, seguimos atentas e vigilantes pregando a vida em abundância para todas, todes e todos.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Sue’Hellen Monteiro de Matos é Mulher EIG SP; Doutora em Ciências da Religião (UMESP); Graduada em Teologia (FATIPI), Docente de Teologia na UNIMES; Reverenda da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil; Associada da ABIB.

Lauana A. Flor é feminista, mãe de menina, casada e mulher EIG SP; teóloga pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestra e doutora em Ciências da Religião - UMESP.