Nem Lula, nem o PT.

Nem Lula, nem o PT.

Findadas as eleições municipais, iniciou-se o ciclo de análises para saber quem venceu esta etapa da história democrática brasileira. Quase que como lugar comum, decretou-se a derrota de Lula e do PT, o desgaste de Bolsonaro, e a vitória do PSD e MDB. Mas será que foi isso mesmo? Me parece que não.

Não há vitória na manutenção. Há muito se fala que o MDB não possui uma estrela nacional que possa encabeçar o partido em voos maiores. Nem na época do saudoso Ulisses Guimarães que, pelo que me lembre, foi o último Canto do Cisne do nacional PMDB. Desde então 10 entre 10 cientistas políticos concordarão com a feição municipalista do MDB. Por esta razão, não se pode falar de vitória, mas de manutenção; quiçá vocação municipalista, marca do partido, assim como sua condição amorfa que lhe permite acoplar aos mais diferentes governos e alianças.

O PSD segue pelo mesmo caminho do anterior com quadros que, dentre outros, remontam ao extinto PFL. Eduardo Paes prefeito reeleito em primeiro turno pelo PSD na capital fluminense, entre outras siglas, teve uma passagem pelo PFL. Em outras palavras, o que termos é uma reprodução do modo municipal de vida da Nova República. O fato do PT em 2004 ter feito mais prefeituras é que representou um ponto fora da curva. No restante do tempo a "normalidade democrática" vem sendo mantida entre centro-direita e direita. 

Um partido que aumentou o número de prefeituras e que esteve na esteira de apoio de outras tantas, não pode ser considerado perdedor. Ainda mais quando lembramos que, em um passado recente, a elite brasileira junto da mídia tentou enterrá-lo vivo. Na verdade, o PT saiu com uma pequena vitória nestas eleições pois aumentou o número de prefeituras sob seu comando direto. Entretanto, este fato não impede uma reflexão, ou pelo menos um convite à mesma.

Desde 2018, no comício pró Haddad na Lapa, uma fala de Mano Brown ecoa entre partidários do PT e analistas, qual seja, a de que o partido deveria voltar às suas bases. Conquanto a reação tenha sido proporcional à sua reverberação, me parece que o PT, ao mesmo tempo em que ascendeu ao poder, perdeu seu habitat, seu lócusformativo, sua capacidade de melhor escuta. Ora, o percurso desse distanciamento é mais do que natural para uma agremiação que se destacou das suas bases ao ascender exponencialmente ao poder. O exercício do poder envolve adequações, empenho para bailar ao som de uma nova música.

Suspeito que foi nessa hora que o PT percebeu que tinha perdido a força de seus grandes e históricos mediadores. Isto porque são as instituições que cumprem esse especial papel mediador quando se está no poder. Neste ponto, ao que me parece, o PT foi surpreendido.

Primeiramente com o enfraquecimento do movimento sindical como projeto da elite em cortar as possíveis mediações. Ora, desde 2016 o movimento sindical, principal núcleo de formação do PT, vem sendo desbastado, fatiado. Maior exemplo disso foi tornar a contribuição sindical não obrigatória (Lei 13.467/2017). Em parte o planejado desgaste veio pela impiedosa propaganda que procurou desqualificar o movimento, trazendo a ideia que é melhor a negociação direta patrão-empregado, como se a correlação de forças se mostrasse equânime pelo simples assento à mesma mesa. De outra parte, pela ênfase na precarização das relações de trabalho através do estímulo do chamado empreendedorismo, a chamada "uberização" da economia.

Outra perda foi do que seria o desmonte da Teologia da Libertação (TL) no seio católico, movimento este empreendido como Política da Secretaria de Estado norte-americana, como bem nos lembra o professor João Cesar de Castro Rocha, e pelo Papa João Paulo II. A TL forneceu excelentes quadros para a formação do PT, além de contribuir para seu arejamento e engajamento por justiça social. Seu progressivo desmonte, fez com que houvesse uma perda da capilaridade cristã no Partido dos Trabalhadores.

Outro importante enfraquecimento, desta vez pelo lado evangélico, foi da perda da mediação de lideranças mais afeitas à Teologia da Missão Integral. O esfarelamento desse grupo e a descaracterização desta teologia proporcionou o recrudescimento da uma posição mais radicalizada entre evangélicos em que a temática da justiça social, antes valorizada, foi praticamente cancelada. Ora, era esse grupo em especial que não permitia que a mortalha, que a redoma fundamentalista fosse colocada sobre a igreja evangélica no Brasil. Uma vez a barreira deposta, o que se constata é a intransponibilidade que inviabiliza que as notícias sobre a economia e sobre as melhorias sociais cheguem ao pleno conhecimento de boa parte dos evangélicos; ou quando chegam, é por meio de uma interpretação batizada por lideranças que ressaltam o divino ao mesmo tempo que seguem estigmatizando o presidente. O resultado? Estagnação avaliativa do governo Lula.

Por fim, me parece que o PT precisa de novas leituras de contexto. As pesquisas acadêmicas mostram que os programas sociais dos governos do PT ajudaram a reconfigurar famílias que estavam nas Classes D, E e a reconfigurar a classe C, inclusive com seu incremento. Ocorre que ao ascender economicamente o beneficiário esboça uma gratidão por uma ação pretérita. Sim, o PT fica na memória. Todavia, eleição se decide no presente, de olho no futuro. Não é costume se votar olhando para trás e sim para frente. Eis a razão do uso vezeiro das promessas de campanha...

Outro fator correlato é que a fabricada crise de 2015, como bem nos lembra o professor Jessé de Souza, devolveu parte dos que ascenderam socialmente às suas classes de origem. Ora, psicologicamente falando, pior do que a estagnação socioeconômica, é a perda, o retrocesso. O efeito foi um coletivo ressentimento que a extrema direita brasileira soube capitalizar, canalizando o ódio para o PT. Infelizmente a amargura é o único sentimento ligado ao passado que influi nas decisões do presente e nas escolhas do futuro. 

A questão é que a citada ascensão social trouxe no seu bojo novas preocupações e horizontes para as pessoas. Ao que parece é nessa esteira que a chamada teologia coach e a lógica neoliberal do empreendedorismo pavimentaram seu crescimento. Em contraposição, é possível que o discurso do PT, ou mesmo sua melhor comunicação, esteja distante das pautas da classe C. Mais do que encontros com correligionários, o PT precisa se reencontrar com os trabalhadores, sindicalizados ou não, beneficiados de programas ou não, religiosos ou não. Aliás, encontros com religiosos trabalhadores, que são os pastores, líderes que passam ao largo das megachurchs

E Lula? Lula é um símbolo; está em outro patamar. Nesta qualidade, ele transcende o calendário eleitoral e o resultado das eleições. De modo similar, ele é preservado ao não arriscar seu cacife político em demorados mergulhos em campanhasde correligionários. Afinal, todo símbolo tem tanto uma natural vocação para autopreservação, quanto lega uma dificuldade no momento de sua substituição. Símbolos costumam transcender o seu próprio momento histórico. 

Penso que Lula, o símbolo, precisa ajudar o PT a encontrar e pavimentar um caminho que permita que seu legado como governante não se torne uma estrada vicinal esquecida em um passado distante. A História testemunha, com relativa prodigalidade,que o estranhamento e esfacelamento costuma ser um lugar comum para os herdeiros de um símbolo. É preciso trabalhar para evitar o surgimento de petismos, ao invés da continuidade do PT. Nada seria tão ruim para a memória de Lula, quanto ver seu lastro se dissipando em meio às disputas internas do partido que ajudou a fundar. 


Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pesquisador em Estágio de Pós-Doutorado pela UEMS (Bolsista CAPES); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e Co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinaresO Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas; e A Noiva sob o Véu: Novos Olhares sobre a participação dos evangélicos nas eleições de 2022.