Nunca foi por causa de política: Opinião sobre Eliziane e Feliciano

Nunca foi por causa de política: Opinião sobre Eliziane e Feliciano

Se tem algo que uma pessoa verdadeiramente vocacionada ao ministério pastoral não quer é se envolver em movimentações ou discussões políticas e/ou partidárias. Isso consome a alma e o tempo de quem tem aquele sentido de urgência evangelística, criando dissensões que apenas prejudicam o cumprimento da Grande Comissão que deixou àqueles que entendem o sentido de sua vocação. E qual o porquê de eu falar sobre isso, sendo que eu mesmo acabei me envolvendo naquilo que disse ser uma objeção de consciência de quem é um vocacionado? Ou eu sou incoerente (e até hipócrita), ou não sou vocacionado ou tenho algum motivo muito forte para contradizer e me opor na prática a algo que de fato acredito. Para entender e dar a você a opção de escolher em quais dessas opções eu me encaixo, vou ter de ir no passado, lá pelos idos dos anos 80 e 90, a fim de deixar tudo bem claro.

Antes do meu chamado pastoral, ainda nos anos 80, em virtude da influência de meus pais e irmãos, eu nutria uma indignação profunda com a injustiça, a pobreza e a miséria. Meu pai era militar em uma época que era muito bom ser militar, em plena ditadura, ainda que em seu ocaso; todos nós estudávamos em colégios militares e morávamos em um prédio na Tijuca feito para militares. Frequentávamos o Clube Militar no Jardim Botânico e usávamos os excelentes hospitais da Marinha (Marcílio Dias, Ilha das Cobras e Nossa Senhora da Glória), sem precisar usar a rede do INAMPS (não havia SUS na época). Longe de sermos ricos, mas tínhamos esses pequenos privilégios que já nos faziam corar de vergonha ante a pobreza de nosso país. Lembro-me da senhora que ia na nossa casa pegar as roupas para lavar e passar. Ela morava no morro da Formiga e tinha de subir a pé com aquela trouxa imensa de roupas e depois trazia lavada e passada. Em uma das vezes, eu e meu irmão fomos até lá pois ela havia ficado enferma e não conseguia trazer as roupas. Nunca tínhamos visto aquela realidade, embora estivesse bem perto de nós. Lembro de meu irmão mais velho dizer: o que faz a gente ser melhor que ela para morarmos com conforto e ela e seus filhos nessas condições? Foi essa indignação e esse sentimento de que não éramos melhores que ninguém que nos fez nos envolvermos em movimentos sociais e políticos, pois quanto mais líamos os evangelhos, e eu era um leitor voraz desde meus 9 anos, mais nossa indignação crescia.

Com o tempo e com a maturidade, acabamos vendo que não vamos conseguir mudar a realidade de um país ou de uma sociedade de forma se moldar aos padrões altruístas do que é revelado nos evangelhos. Passamos a entender que podemos e devemos mudar a realidade ao nosso redor, aquela mais premente e próxima de nós, em acordo com o termo bem presente nas palavras de Jesus, o “próximo”, aquele que temos algum poder e capacidade de fazer algo. E, nesse sentido, a mensagem poderosa do Evangelho de fato é eficaz para mudar, segundo aquilo que nossa fé cristã acredita.

Com 16 anos, ainda como aluno do colégio militar do Rio de Janeiro, tive a convicção de meu chamado ao ministério pastoral e passei a planejar a minha vida para isso. A partir disso, fui deixando de lado a militância política juvenil e passei a adentrar com mais profundidade nas escrituras sagradas e no trabalho evangelístico e de ensino. Fui o mais jovem supervisor de Escola Bíblica Dominical da Igreja de Deus (denominação pentecostal de que sempre fiz parte) e também um dos mais jovens pregadores dos congressos de jovens e de escola dominical da denominação. Fui missionário por 6 anos e depois fui ordenado pastor, atuando de tempo integral no ministério pastoral desde o início dos anos 90.

A partir desse ponto, minha única contribuição política era votar nas eleições, o que sempre fazia pensando nos princípios que carrego no peito desde minha infância. Nada mais que isso. Meu foco principal sempre foi a Igreja e o testemunho do Evangelho, a fim de que a poderosa mensagem de Jesus alcançasse os corações mais duros e estes pudessem ter sua realidade e a realidade ao seu redor transformadas. Essa é a verdadeira transformação que sempre acreditei: de dentro para fora.

Nesse período, estava com meu ministério pastoral consolidado no Rio de Janeiro, tendo privilégio de viver os melhores momentos do testemunho do evangelho na cidade, envolvido em com ações que dignificaram o nome de Jesus, como a madrugada do carinho com Deus, iniciativa que ocorria no centro do Rio junto às pessoas em situação de rua, os projetos de creches e ambulatórios médicos nas comunidades do Borel e do Dona Marta, a casa de reintegração em Seropédica e o mais grandioso deles, a Fábrica da Esperança, gerida pela missão Vinde, do então reverendo Caio Fábio, que tinha o respeito de toda a sociedade carioca à época e que contava com nosso voluntariado.

Durante todos esses anos, posso dizer com orgulho que nunca utilizei o púlpito ou as instalações da igreja, sejam físicas ou virtuais, para falar de política ou de ideologias políticas. Nunca permiti que políticos falassem em nossos púlpitos e jamais dei apoio eclesiástico a qualquer um deles. E posso afirmar de fato que, com raras exceções, a mais conhecida delas, a Igreja Universal, não havia esse hábito de as igrejas apoiarem políticos da forma como vemos hoje. Era algo bem mais velado ou de cunho pessoal e restrito a alguns pastores.

E qual o motivo de eu dar essa volta histórica falando tanto da minha vida e do meu passado como se eu quisesse fazer um ode a mim mesmo? Eu preciso que todos entendam o que foi esse hiato na minha vida, pois ele é um hiato na vida de muitos colegas meus pastores. Nossa preocupação sempre foi com o testemunho do evangelho, ou seja, que a mensagem de Jesus não encontrasse obstáculos nas palavras e atitudes de gente mal intencionada, de lobos vorazes travestidos de ovelhas, de cães que queriam apenas as ovelhas para comer suas carnes e se vestirem com suas lãs.

Foi por esse motivo que lutamos contra as vis teologias da prosperidade, do domínio, o fajuto movimento do discipulado, que tinha como objetivo controlar as pessoas, as diversas formas de legalismo, desde os judaizantes até o ascetismo alienante. Não havia nessas lutas nenhum caráter político, mas o zelo pela Casa de Deus, a Igreja, a fim de que o Evangelho de Jesus não fosse motivo de chacota entre os incrédulos. Nesse sentido que foi criada a AEVB (Associação Evangélica Brasileira) a qual tive a honra de estar no dia de sua fundação como apoiador e que teve entre uma de suas primeiras decisões considerar a Igreja Universal do Reino de Deus uma agremiação não evangélica, por seu caráter totalmente paradoxal à mensagem do Evangelho de Jesus, propondo que a prosperidade financeira é sinônimo de bençãos de Deus, consequência de práticas de escambo espiritual para obter essas “bênçãos”. Essa luta para que pudéssemos traçar limites para esses grupos mercantilistas me rendeu enormes problemas, pois não era possível conciliar com esse tipo de desvio, o que nos fazia entrar em tremendas porfias com essas lideranças que falseavam o puro e simples evangelho de Cristo com vistas a obter poder e recursos para espaços em televisão e rádio.

Mesmo nesse ambiente belicoso no que diz respeito à distorção da mensagem do evangelho, não me recordo e sei com certeza que não era comum, algum pastor ser demonizado por sua escolha eleitoral. Ninguém era chamado de “endemoninhado” por votar em um candidato A ou B, seja de esquerda, direita ou centro. Da mesma forma, não havia a cultura, pelo menos em nosso meio pentecostal, de pastores que se envolviam em política (havia alguns), tratar opositores de forma vil e grosseira.

Dando um pequeno salto cronológico dos anos 90 para os idos de 2014, posso afirmar com toda a certeza que muita coisa mudou. Pela primeira vez em minha vida eu vi pastores dizendo claramente do púlpito que qualquer irmão que votasse em candidatos de determinados partidos (todos de esquerda) não poderiam ser mais considerados irmãos. Também foi pela primeira vez que vi pastores se contradizendo, ao ensinarem suas ovelhas a fazerem aquilo que eles sempre disseram ser errado, a saber, demonizar governantes legitimamente eleitos. Eu vi pastor aplaudindo e compartilhando a atitude de pessoas que chamavam a atual presidente da época, Dilma Rousseff, de “vaca”, “filha da p%t@” dentre outros impropérios inimagináveis em tempos pretéritos. A ideologia política extrema, que nunca foi a marca dos evangélicos, que sempre tiveram uma tendência mais moderada e centrista, se disseminou nas igrejas de forma assustadora. Eu sei que em 2014 eu acordei para isso, pois a situação chegou até mim de forma avassaladora através da maldade que foi feita contra meu irmão em uma igreja evangélica da qual ele era diácono, líder de assistência social e tinha um projeto de ensinar jiu-jitsu para crianças carentes de comunidades em Florianópolis. Vale a pena eu descrever essa história, pois foi com ela que eu me desesperei ante a realidade da igreja evangélica daquele período e para o qual eu acho que não estava preparado e foi por causa dela que tive de sair do hiato a que me referi.

Meu irmão, como descrevi anteriormente, tinha a indignação justa que aprendemos com nossos pais. Embora fosse uma pessoa que lia muito os evangelhos, ele não quis se reunir em nenhuma igreja ou religião. Ele acabou se envolvendo na militância política, tendo sido um dos fundadores do PSTU em Santa Catarina e atuante no sindicato dos professores do município de Florianópolis. Em um ponto de sua vida, de profunda angústia e vazio existencial, ele se aproximou de uma igreja neopentecostal, por um ponto de contato que o ajudou a gostar desta igreja: o surf. Ele teve aquilo que chamamos em nosso meio evangélico de conversão genuína, tendo se tornado um discípulo fiel a Cristo e a igreja dele. Era lindo ver o brilho nos olhos dele ao falar de Cristo. E isso foi bem na minha pior época, quando eu perdi tragicamente minha filha e esposa. Vê-lo dessa forma era um alento ao meu ferido coração. Entretanto, tudo acabou em 2014. Comecei a vê-lo triste e angustiado, como eu não o via fazia tempo. Ele estava sofrendo um processo de perseguição dentro de sua igreja. O motivo? Apenas por ter manifestado que votaria em Dilma naquele ano. Ele foi retirado de todos os ministérios que cuidava, foi difamado e tratado de forma indigna, como se fosse um ímpio. Eu cheguei a ter de intervir na situação, procurando seu pastor para que ele se manifestasse olhando em meus olhos sobre o que estava fazendo com meu irmão. A covardia impediu aquele que se dizia pastor de fazê-lo e corria de mim quando eu o procurava. Essa situação encheu meu coração de tristeza e profunda indignação na medida em que meu irmão dizia o que estava ouvindo e passando em sua igreja. Defesa de uso de armas, de morte de criminosos, de frieza para com a pobreza, de exaltação e “beatificação” de um sistema econômico e político, como se isso fosse possível. Meu irmão era apenas mais um dentre tantos que começaram a ser escorraçados de suas igrejas apenas por discordarem dessa mistura perigosa de igreja com ideologia política.

De outro lado, é importante que se diga, alheio a tudo isso, havia uma parte da igreja, principalmente composta dos grupos pentecostais mais tradicionais, que minha denominação fazia parte, que ainda não estava com esse mesmo espírito beligerante de grupos neopentecostais e de alguns grupos ditos reformados, particularmente os calvinistas. O que ocorria de mais grave nesses grupos, até aquele momento, eram as fantasias folclóricas em torno de teorias conspiratórias acerca dos desenhos animados, como os da Disney, marcas de roupas, ritmos musicais e uma incipiente estratégia de imposição de um “gayzismo”, segundo o imaginário de muitos crentes, principalmente os pentecostais, grupo a que pertenço. Excetuando essas sandices, havia uma preocupação entre os membros com a crescente maldade do mundo e uma busca de maiores experiências místicas dentro daquilo que chamamos de dons espirituais no pentecostalismo. Multiplicaram-se as igrejas, onde o conhecido “reteté”, prática pentecostal de grande extravagância de estética pentecostal, tinha prevalência e pregadores itinerantes, vários deles ligados aos Gideões Missionários da Última Hora, os quais iam nas igrejas com o objetivo de reproduzir avivamentos e fervor evangelístico, todos eles regados a estética reteté. Foi desse meio que surgiram figuras como o pastor Ouriel de Jesus, Marco Feliciano dentre outros menos conhecidos. Marco Feliciano era o típico pregador itinerante simples e que nutria uma característica avivalista que fazia com que os jovens das igrejas do ramo pentecostal mais tradicional o respeitassem. Suas mensagens, ainda que bastante superficiais, focando em usos e costumes e platitudes retiradas de uma leitura muito simplista da Bíblia, arrebatavam multidões, que viajavam quilômetros para vê-lo. Esse mesmo pastor, anos depois, viria ser deputado federal e presidente da comissão de direitos humanos da câmara, cargo que obteve graças à omissão dos parlamentares da base do governo do PT na época, que abandonaram a comissão em protesto a sua indicação pelo PSC (que fazia parte da base do governo Dilma) e com esse abandono, possibilitaram sua eleição por 11 votos a 1. A partir daí, a guerra estava declarada e era questão de tempo para que a teologia do domínio neopentecostal, fundamentada e apoiada pelo teonomismo e cosmovisão cristã calvinista pudessem entrar na briga política usando a fé e os púlpitos para alçar alguém que eles entendessem representar esse conjunto de valores.

Antes de qualquer coisa, preciso dizer que havia motivos verdadeiros para uma certa indignação de parte dos evangélicos no Brasil com posturas arrogantes dos governos petistas. Houve, de fato, uma tentativa de se usar as estruturas do estado para impor uma cultura baseada nas teses identitárias trazidas pela new left americana. As estratégias desses grupos eram como sementes, cujos resultados seriam colhidos mais tarde. Lembro-me da época em que grupos de defesa dos GLS, sigla usada na época para definir gays, lésbicas e simpatizantes, em protesto ao pastor deputado Marco Feliciano, que havia assumido a CDH da câmara, promoveram os “beijaços” nas portas de igrejas e dentro das igrejas. Nessa época, eu era pastor em Balneário Camboriú, Santa Catarina. Estávamos em nosso culto de domingo quando um grupo de moças entrou no salão da igreja, sentou nos bancos e começou a se beijar. Essa era a pior tática possível, pois trouxe uma ideia de guerra e perseguição, ingredientes perfeitos para serem manipulados politicamente. Nem vou falar das bobagens ditas pelo então ministro Gilberto Carvalho, que afirmou em um encontro de correligionários que era hora de disputar ideologicamente com os evangélicos. Isso foi entendido como um sinal de guerra ideológica, ainda mais que governo nenhum tem de pensar em disputar ideologicamente com qualquer agremiação religiosa.

Como todos sabem, a maior parte da igreja evangélica, apoiou Aécio Neves (PSDB) para a presidência da república em 2014, abandonando uma evangélica de excelente testemunho como Marina Silva, que em 2010 teve mais apoio de evangélicos que em 2014. Entretanto, mesmo com esse apoio, já com uma estratégia de guerra política e cultural que entrou nas igrejas de forma muito violenta, não houve a divinização do candidato. Provavelmente, por mérito dele mesmo, político oriundo de uma família de políticos experientes de Minas Gerais.

Essas eleições de 2014 foi o que me despertou a voltar a falar de política. Jamais nos púlpitos, mas entre meus colegas pastores e queridos amigos e irmãos. Percebia que a única forma de conter essa onda de ódio que crescia a cada momento, de parte a parte, pois o governo daquela época também não ajudava, caricaturizando os crentes, de forma a deformá-los diante da sociedade, só seria reduzida com a eleição de uma pessoa com postura moderada e respeitosa e que não entraria na cultura de ódio político. Essa pessoa, naquele momento, era Marina Silva. Foi desse momento em diante que eu abandonei a postura de ser um eleitor de 4 em 4 anos para tentar ajudar a criar um campo moderado de forças e que tivesse a menor rejeição dos meus irmãos evangélicos. Infelizmente, foi tarde demais. A ideologização da igreja já estava em um nível que Marina Silva era chamada de “petista”, “comunista” e “abortista”, tudo o que ele não era. Além disso, o partido do governo não conseguia, como ainda não consegue, enxergar seus problemas junto à população e seu desgaste com o povo, criando assim as bases para o que estaria por vir, algo inimaginável para quem viveu tudo o que vivi na igreja desde os anos 80.

Perto das eleições de 2018, comecei a ser surpreendido com irmãos citando frases e compartilhando vídeos de um político que eu conheci no Rio de Janeiro e que era um deputado insignificante naquele estado: Jair Messias Bolsonaro. Logo ele estaria nos púlpitos das maiores igrejas pentecostais do Brasil, principalmente as assembleias de Deus, juntamente com sua esposa, que já era evangélica. Isso me assustou, pois eu já vi a igreja apoiar Collor, Fernando Henrique, Serra, Aécio Neves, todos políticos de um campo de centro ou centro direita, onde se presume uma certa moderação. Mas, Bolsonaro representava uma figura extremista. Não era comum a igreja dar apoio a alguém que afirmou que Fernando Henrique deveria ser fuzilado ou que bandido bom era o bandido morto, apenas dois exemplos dentre tantos outros. Nesse momento, eu vi que os limites haviam sido ultrapassados e que agora não era uma questão de me envolver em uma militância política, mas em uma batalha apologética, em seu melhor sentido, que envolvia uma exposição clara desses erros à luz do Evangelho de Jesus. Minha vocação, sempre em primeiro lugar, me impulsionava com o ardor poimênico a não permitir que os filhos de Deus, os simples irmãos membros das igrejas, pudessem ser arrastados por essa maldade e a igreja se tornar um salar, onde nada mais pudesse crescer. Esse era o cerne da luta: não permitir que a igreja fosse conspurcada por uma divinização de um político, vituperando nossos púlpitos e o sagrado evangelho. Era esse o ímpeto que moveu meu coração para me lançar nessa luta. Nunca foi por política e sim o ardor e zelo pelo evangelho de Jesus.

O resultado de tudo isso, todos sabem: a igreja se aliou a um projeto político que a conspurcou e tirou grande parte de sua autoridade. Inúmeras pessoas boas saíram de nosso meio e outras foram escorraçadas, com famílias destruídas e vidas emocionalmente arrasadas. Durante a pandemia, recordo-me de que no grupo de informes de minha denominação, toda a semana havia uma notícia de algum de nossos pastores e pastoras mortos pela COVID. Vários deles, apoiaram acriticamente e divinizaram o seu “Messias” político e tombaram vítimas da omissão criminosa daquele.

Os que eu chamo de “filhos de belial”, pastores que se aliaram politicamente ao bolsonarismo, promoveram caça às bruxas, como torquemadas ressuscitados para promoverem uma inquisição eclesiástica, chamando a todos os que não se curvaram à divindade promovida por estes aldrabões de “comunistas”, “abortistas”, “hereges”, “lixos” e outros adjetivos que nem merecem minha menção aqui. Quem não se dobrou ao bolsonarismo nas igrejas perdeu as chances de crescer em seus ministérios pastorais. Eu mesmo, que tinha convites para ir em igrejas do Brasil todo pelo menos uma vez ao mês, nunca mais recebi nenhum convite. É a chamada “Sibéria eclesiástica” em que somos postos por não nos rendermos a essa idolatria reinante na igreja.

Pois bem, o mesmo ocorreu com a senadora Eliziane Gama (PSD). Quem conhece sua história, sabe que ela sempre foi evangélica pentecostal. Ela de fato pegou a época em que era comum os jovens das igrejas buscarem pregadores itinerantes para pregarem em seus cultos de mocidade ou eventos que envolviam várias igrejas irmãs. Ela se tornou deputada estadual com apoio dos evangélicos de seu estado, por verem nela uma pessoa correta e com uma fé legítima e não alguém que se tornou evangélica para angariar votos. Ela não era do campo da esquerda, tanto que votou a favor do prosseguimento do processo de impeachment contra a presidente Dilma, quando já era deputada federal. Mas, bastou se opor ao bolsonarismo e a manter sua postura mais centrista que foi vilmente perseguida por essa ala evangélica majoritária contaminada pelo extremismo e pelo ódio. Sua denominação, a Assembleia de Deus, chegou a fazer uma nota de repúdio contra ela, por seu apoio a Lula no segundo turno das eleições de 2022. Para uma pessoa, filha de pastor e nascida e criada na Assembleia de Deus, ser alvo de uma nota de repúdio de sua própria igreja, é algo de ferir o coração e até fazer com que a fé se dissolva em mágoas. Ela foi um caso dentre tantos outros que sofreram as mesmas perseguições dentro de suas igrejas.

Com a derrota de Bolsonaro nas urnas, o bolsonarismo nas igrejas não foi derrotado. Ele apenas perdeu seu financiamento estatal. Entretanto, os atos de 8 de janeiro, algo extremamente radical para muitos evangélicos, foi o início de um lento declínio desse espectro ideológico dentro das igrejas. Desde esse dia, o silêncio reinou nos grupos de pastores de que faço parte e  nas redes sociais dos mesmos. Um silêncio em forma de espanto com tudo o que aconteceu. Como justificar o vandalismo? Crimes contra o patrimônio público? Isso sempre foi dito que era coisa de comunistas arruaceiros. E agora, o que dizer diante disso? Nossa denominação, por exemplo, é veementemente contra qualquer ditadura. Tem suas raízes na democracia eclesiástica batista. Como concordar com gente que queria um golpe militar? É ainda de se esperar que esses líderes evangélicos, que apoiaram essa loucura, venham a público e se retratem.

A medida com que a CPMI revela o envolvimento de um grupo de pessoas para tramarem um golpe contra a democracia e ao mesmo tempo traz à luz o escândalo das jóias, que envolve diretamente Bolsonaro e sua esposa evangélica, Michele, mais silêncio temos em todos os grupos de pastores e crentes no Brasil. E é nesse momento, nesse contexto, que eu pude ver a exortação mais bem fundamentada, com autoridade de quem conhece e é do nosso meio, contra uma dessas lideranças evangélicas que ainda não se penitenciaram pelo seu apoio vil ao bolsonarismo.

O vídeo em que a senadora Eliziane Gama exorta, admoesta, de forma firme e ao mesmo tempo demonstrando sua tristeza e decepção verdadeiras, o deputado federal e pastor Marco Feliciano, foi como um lavar de alma de milhares de brasileiros, incluindo evangélicos. É incontestável. Foi dito por alguém que, previamente, deu seu histórico de admiração pelo exortado. Nenhum deputado ou senador da situação teria condições de fazer o que ela fez. Todos falariam de uma forma que não seriam levados a sério, pois seriam vistos como “ímpios perseguindo nosso pastor” ou como pessoas revelando seu preconceito a um pastor político. Não era o caso da senadora Eliziane. Ela deixou claro que o admirava; que como eu anteriormente disse, fazia parte de uma juventude da Assembleia de Deus que juntava dinheiro para poder trazer o então pregador itinerante para a sua igreja e que isso era uma honra. Ela havia visto a forma bruta com que ele havia tratado a senadora Soraya Thronicke; ela estava acompanhando estupefata a sua defesa aos crimes de Bolsonaro e sua família. A forma arrogante com que ele tratou seu colega, também pastor, Henrique Vieira. A exortação da senadora não foi pensada previamente; foi um desabafo, um derramamento de tristeza e decepção de forma pública. Quem mais entendeu a mensagem foram os crentes, pois ela usou termos que nós, mais do que ninguém, entendemos.

Por outro lado, o deputado Marco Feliciano não desfruta do mesmo prestígio que outrora desfrutava entre os evangélicos. Sua estética já está longe de agradar os irmãos de nosso meio. Harmonizações faciais, excesso de tratamentos de beleza, sobrancelhas feitas, apenas demonstram vaidade, que tanto ele outrora combatia em suas pregações em congressos dos Gideões Missionários, e que ainda não soam bem em nosso meio pentecostal. Ele não é mais chamado para pregar em igrejas com vistas a trazer um “avivamento” nos cultos, pois essa não é mais a prática dele. Não é visto mais como um pregador de “poder e ousadia” como anteriormente era visto. Hoje, ele é apenas um político evangélico, sem os atributos que o fizeram ser  disputado para pregar nos congressos pentecostais dos rincões de nosso país.

Por isso, acredito que o vídeo com essa exortação firme da senadora, compartilhado em todos os grupos que conheço e de que faço parte, desde grupos de pastores estaduais, nacionais e grupos de pentecostais de diversas partes de nosso país, causou simplesmente o silêncio e nada mais. Se fosse em outros contextos, haveria defesas das mais contundentes ao pastor, alegando perseguição contra a vida dele. Mas, desta vez não. Apenas o sepulcral e ao mesmo tempo ensurdecedor silêncio, daqueles que ainda estão processando tudo o que está acontecendo nesse país, em uma velocidade acelerada. Eu sei de uma coisa: ela lavou a minha alma e a alma de muitos outros como eu. E isso não foi por causa de política, foi pelo ardor e zelo pelo Evangelho de Jesus. Obrigado minha irmã Eliziane!

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Alexandre Gonçalves é pastor da Igreja de Deus  e colunista do The Intercept Brasil, é um dos líderes do grupo Cristãos Trabalhistas, ligado ao PDT. Foi ordenado desde 1994, tendo sido antes missionário atuando em Cuba com implantação de grupos caseiros e em comunidades carentes do Rio de Janeiro. Bacharel em teologia e direito e licenciado em letras, mas sua paixão é a teologia prática. Especializado em implantação de igrejas pelo SEMISUD em Quito, aprendeu os princípios do que chama de “teologia do pobre”. Além de pastor, é servidor público e diretor parlamentar do Sindicato dos Policiais e Servidores da Polícia Rodoviária Federal em Santa Catarina (SINPRF-SC). Siga-o pelo site Teologia do Pobre, pelo Twitter, YouTube e/ou pelo Instagram.