O Brasil e o cristianismo autocentrado

O Brasil e o cristianismo autocentrado

Sexta-feira, dia 07 de julho, tive a alegria de participar, a convite do Instituto Intercultural para o Diálogo, da Festa do Sacrifício, que rememora uma passagem comum a judeus, cristãos e muçulamos: a ordem, dada por Deus a Abraão, para sacrificar seu filho Ismael como demonstração de fidelidade. Abrãao, segundo os relatos, não exitou em cumprir o mandato de Deus e, a pesar da dor, concordou em realizar a ordem de Deus. A demonstração de fé de Abrãao salvou Ismael, pois Deus o liberou de cometer tamanha atrocidade.

Durante a celebração inter-religiosa da Festa do Sacrifício, ocorrida em Brasília, nos foi explicado que, para este dia, é sacrificado um animal e sua carne é distribuída, seguindo três critérios: um terço da carne é destinada às pessoas economicamente vulnerabilizadas, um terço para a família e um terço para os vizinhos. De modo que, no centro da celebração está a prática de uma fé que fortalece a experiência comunitária e se solidariza com as pessoas excluídas do mercado de trabalho.

A ideia do serviço à pessoa próxima, da partilha, da inconformidade em relação à concentração de riquezas, responsável pela pobreza, é central em todas as tradições de fé, inclusive na cristã.

Quando lemos o Evangelho, encontramos Jesus caminhando, empoeirando-se, conversando e colocando-se à disposição das pessoas que eram desumanizadas: mulheres, especialmente as viúvas, pessoas doentes e com necessidades especiais (cegos, sem mobilidade, leprosos, crianças), entre outras.

Jesus não era autocentrado. Em suas parábolas e conversas sempre destacava a centralidade de Deus-Pai. Jesus não proclamou a si mesmo, mas proclamou a boa-nova do Evangelho, que critica, justamente, a religião autocentrada e aliada com o poder.

Nas últimas semanas ganhou repercussão a pregação realizada pelo “pastor” André Valadão , vinculado à Igreja Lagoinha, em que conclamava os seus seguidores a uma guerra santa contra pessoas LGBTQIA+.  Disse o tal “pastor” que, caso Deus pudesse mataria as pessoas LGBTQIA+. Diante disso, estava nas mãos dos seguidores do referido “pastor” irem para cima, ou seja, fazer o que Deus não poderia fazer.

O tal “pastor” realiza as suas “pregações” dos Estados Unidos da América. Talvez já com a intencionalidade de não ter que responder à justiça brasileira por seus crimes presentes em seu discurso de ódio. Por mais que tente se explicar, não consegue se justificar, pois LGBTQIA+fobia é  crime, previsto em lei.

Não é necessário dizer o quanto este assunto repercutiu, o que, provavelmente, era a intenção do “pastor”. Mobilibilizar a rede de ódio que por anos serviu de alicerse para o movimento cristão fundamentalista. O “pastor” desejava holofotes e conseguiu, no entanto, nenhuma de suas explicações serão suficientes para livrá-lo do discurso criminoso. De imediato, uma ação do MPF pediu que o “pastor” assuma com os custos de produção e divulgação de “contrapontos aos discursos feitos, a retração pelas ofensas, e o pagamento de R$ 5 milhões por danos morais coletivos”.  O MPF também pediu ao Instragram e ao Google a análise do conteúdo das publicações de André Valadão, diante de possivel violação à política de combate ao discurso de ódio nestas plataformas.

A resposta do Google foi que o vídeo foi revisado e não foi removido por violação das diretrizes da comunidade. A Meta, dona do Instagram, disse que não comentaria o caso. A postura destas empresas não surpreende, pois parte de suas riquezas é oriúnda com a difusão de discurso de ódio. A aliança entre plataformas digitais e expressões religiosas fundamentalistas é altamente lucrativa.

Ao longo deste texto, ao me referir a André Valadão, coloquei seu título de pastor entre aspas. Explico porque. Na tradição cristã, o exercício do ministério com ordenação é estar a serviço da pessoa próxima, contribuindo para a cultura da paz e da boa-convivência. É certo que, por vezes, doutrinas e dogmas religiosos, acabam se sobrepondo e se contrapondo a principios e valores voltados à cultura de paz. Não é possível ignorar que as barreiras para a aceitação de pessoas LGBTQIA+ são comuns na maioria das igrejas no Brasil. Geralmente, as justificativas estão amparadas em dogmas e doutrinas que são facilmente invalidadas quando contrapostas à centralidade do amor. Há sempre a tendência a justificar a exclusão com a fidelidade às doutrinas. No entanto, apesar disso, as igrejas não são autorizadas a pregar o ódio e a violência contra pessoas LGBTQIA+. Diga-se de passagem que parte significativa das igrejas não fazem este discurso de ódio, mas articulam debates internos para a revisão dos dogmas. Mesmo que este processo de revisão pode levar anos e décadas, contribui para que os preconceitos sejam gradativamente descontruídos, acolhendo pessoas LGBTQIA+ .

Voltando ao “pastor” André Valdão. Seu discurso e prática colocam-se em total contradição com o ministério com ordenação. Primeiro porque ele atribui a si mesmo uma autoridade que não lhe é conferida: a de dizer o que Deus quer ou deixa de querer. Segundo, porque ele se coloca como o centro da pregação, que está em total contradição com a tradição cristã evangélica. Para igrejas evangélicas, o centro da fé é Jesus Cristo. Pastores e pastoras não são autoridades acima do bem e do mal e muito menos acima de Jesus. Considerando o caro principio protestante de separação entre Igrejas e Estado, caberia ao pastor pedir afastamento de sua igreja, ou então, a igreja afastá-lo, até que os órgãos públicos competentes realizassem uma investigação sobre se ocorreu ou não intencionalidade de incitação ao crime.

Acontece que vivemos em um país que, primeiro, não compreende o sentido da laicidade. Segundo, por aqui se aceita a falsa concepção de que uma pessoa com ordenação está autorizada a realizar os discursos que quiser. Terceiro, o cristianismo autocentrado é o mais característico no país, isso significa, a concepção de um cristianismo em que as pessoas são orientadas a se preocuparem unicamente com elas mesmas e, quando muito, com suas famílias, deixando de lado a empatia, a cultura do encontro e a abertura para a pluralidade. O discurso de André Valdão acende uma luz com vermelho intenso para todas as igrejas, pois aponta para o risco de um processo de decadência da tradição cristã.  Neste sentido, cabe ao conjunto das igrejas, especialmente, evangélicas, avaliar o conteúdo das pregações realizadas, tanto nos cultos de domingo, quanto nas redes.

* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site


Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.