O incômodo dos hereges

Os hereges incomodam por três principais fatores: primeiro pela convicção com que sustentam suas posições; segundo pela competência com que fazem; e terceiro pela coragem que os habita.

O incômodo dos hereges
crédito: Tv Jornal (Reprodução Pixabay)

Por que a divergência causa tanto furor no meio evangélico atual? Por que todo mundo precisa ter o mesmo pensamento e visão de mundo? E ainda: por que o divergente é tratado como leproso, herege? Por que a tentativa de destruição do herege se o que ele diz, no fundo, para o sistema religioso, não tem valor ou importância? Para que silenciar uma voz, diante de uma massa religiosa libidinalmente conduzida, como nos lembra Freud?

Sem desconhecer a existência das heresias, dos ventos de doutrina, que curiosamente encontra em certos grupos evangélicos de charco seu epicentro neste país, penso que os tabulados, ou ainda, os "tagueados" hereges incomodam por três principais fatores: primeiro pela convicção com que sustentam suas posições; segundo pela competência com que fazem; e terceiro pela coragem que os habita. No tocante a coragem, creio que ela nasce em tais corações como uma derivação da verdade. Sim, como nos lembra Rubem Alves, a "verdade da heresia" é que ela esconde jogos de poder; religiosos e cruéis jogos de poder. Em outras palavras, herege é o nome do derrotado, daquele que foi vencido no embate religioso. Herege também é aquele que ousou pensar fora da caixa. Herege, na grande maioria das vezes é o diferente, honesta e corretamente diferente.

A convicção dos ditos hereges constrange os sumos-sacerdotes do nosso tempo. Via de regra o trono de Caifás é costumeiramente ocupado por gente dada a concessões e acordos. Não é a verdade, uma vez estabelecida, que norteia aquela liderança; são os jogos de poder. Por isso que se deixam levar pelas circunstâncias. O curioso é que se houvesse uma perseguição atroz contra a Igreja, pavor que assombra 7 entre 10 evangélicos neste país, qual seria a maior chance de vermos uma defecção? Seria entre os chamados hereges que se norteiam por convicção, ou entre os membros do sinédrio denominacional hodierno, marcadamente dirigidos pelas circunstâncias?

Particularmente fiquei impressionado, mas não surpreso, com os líderes que confessaram no privado para mim que as notas de repúdio confeccionadas, contra meu apoio pessoal a certo candidato à presidência, se deram por questões circunstanciais. A pressão os fez escreverem tais notas, assim como a pressão fez Arão moldar o bezerro de ouro no deserto, este último, segundo o relato do Êxodo.

Os hereges devem ser dotados também de diferenciada competência. Ora, como uma pessoa consegue mexer com toda uma estrutura? Como uma palavra, um ensino, um livro, faz toda uma estrutura dançar? Lembro de Leonardo Boff e a perseguição que sofreu da milenar Igreja Católica Apostólica Romana na década de 1980. Como um teólogo, periférico pois oriundo do hemisfério sul, consegue fazer uma estrutura milenar estremecer? Fico com a segunda explicação: sobra competência em quem diverge, quanto mais a mediocridade dos que convergem vai sendo acentuada.

Ao lembrar das notas feitas contra mim... digitação errada, inexistência de concordância, ilações atribuídas, sem contar o completo desconhecimento e desprezo pelo regramento institucional, percebo o nível de mediocridade reinante. Teve líder que teve a pachorra de dizer que a nota de repúdio que escreveu e divulgou nas redes era de caráter privado e não público! A impressão que passa é que o bacharelado de teologia foi concluído numa espécie de Mobral teológico.

Lógico que nenhum contundente posicionamento se faz sem coragem. Mas a coragem do herege é oriunda da certeza que ele tem de que a verdade está com ele, e não com o sistema religioso. É uma coragem que brota à semelhança de Jesus, a tal ponto que desconsidera os freios institucionais, uma vez que a verdade não pode ser freada.

O que falta a muita liderança institucional é coragem. Como não resistem ao confronto direto, falam por notas, sempre se escondendo atrás do papel. Falta coragem para muitos líderes assumirem o Evangelho em sua inteireza, e não em sua conformação institucional-religiosa. Falta coragem de ser. Falta coragem para ser. Falta coragem inclusive para pedir perdão, pois quando o fazem, exercitam tal prática em privado, ao mesmo tempo em que sustentam a ofensa no público.

Em suma, os hereges de hoje são tratados de maneira dupla: no privado, sobra benquerença e pedido de perdão; no público, os sinédrios seguem mantendo-os numa cruz (sempre "contra a vontade, levados pelas circunstâncias"), ainda que concomitantemente reconheçam o equívoco e peçam perdão. Todavia, o cadáver está lá, apodrecendo no madeiro atual que são os sites e redes sociais. Pelo menos, os hereges são contados, desde o início da História do Povo de Deus, com Jesus, Pedro, Paulo, Elias, Eliseu, Jeremias, Ezequiel, Isaías, Thomas Muntzer, Jacob Hutter, Lutero, Zwinglio, Thomas Helwys, entre outros. Por outro lado, detestaria ser lembrado entre os que integram o colegiado, a roda de Caifás.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas.