O investimento religioso do governo paulista

O Brasil é considerado um estado laico. Mas a sua Constituição, promulgada “sob a proteção de Deus”, mostra que no estado laico brasileiro a religião teve, tem e sempre terá grande relevância política. A julgar pelos investimentos do Estado de São Paulo, a missão está basicamente cumprida.

O investimento religioso do governo paulista

No último dia 3 de maio, um decreto publicado no Diário Oficial do Estado autorizou o afastamento da secretária estadual de Políticas para a Mulher de São Paulo, Sonaira Fernandes, por um período de quatro dias. O motivo: a secretária, acompanhada de dois assessores, viajou para Genebra, na Suíça, para participar de evento religioso promovido pelo ministério Parlamento y Fe (ou Parlamento e Fé, em português) cujo objetivo é disseminar os princípios bíblicos a autoridades governamentais.

De acordo com o Diário Oficial, Sonaira não terá seus dias descontados apesar da ausência. A assessoria de imprensa da secretária justificou a viagem informando que ela seria uma das palestrantes. No entanto, o nome de Sonaira não aparece na programação oficial de conferencistas disponível nas redes sociais do Parlamento y Fe. E até a conclusão deste texto, nada foi publicado sobre a participação da secretária no evento em suas redes sociais.

Entre passagens e hospedagem para secretária e equipe participar de um congresso religioso, o governo estadual desembolsou quase R$ 136 mil. Difícil é entender quais serão os resultados desse investimento religioso para a política paulista. Tanto que o mandato coletivo Bancada Feminista, do PSOL decidiu acionar o Ministério Público para abertura de investigação. As deputadas consideraram “imorais” os valores utilizados em um evento que fere “a laicidade do Estado”, princípio que está na nossa Constituição.

O congresso Uniting our Nations and Reconciling (Unir as nossas Nações e Reconciliar, numa tradução livre), realizado em Genebra entre os dias 8 e 12 de maio, parece ser o evento mais importante do Parlamento y Fe, criado pelo pastor argentino Luciano Bongarrá. Em vídeo institucional, o pastor diz que foi tocado pelas palavras de Paulo em carta a Timóteo em que o apóstolo pede orações para todos os homens, reis e autoridades (1 Timóteo 2:1-2). Por isso, desde sua fundação em 2008, o objetivo do ministério é estabelecer, nas diversas esferas de governos, “um homem de Deus que possa compartilhar a mensagem transformadora de Jesus Cristo”, diz Bongarrá em vídeo institucional.

Segundo o pastor, levar o evangelho às autoridades é uma missão atual. “Qual é o meu sonho? Qual é o sonho de Deus? Que em cada legislatura um homem transformado por Jesus Cristo possa ser o sal e luz. Queremos fazer discípulos de Jesus Cristo no mundo da política”. Olhando assim, de bate pronto, a ideia até parece boa. Mas diz a sabedoria popular que as boas intenções não levam exatamente para o céu.

Nos últimos anos vimos que essa mistura de religião com política quase nunca traz resultados positivos, mas sim retrocessos com pessoas falando em nome de Deus ao mesmo tempo que incitam preconceitos e violências. Por aqui, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) seguiu o chefe Jair Bolsonaro (PL) em sua máxima “o estado é laico, mas somos cristãos” e nomeou evangélicos para secretarias que tratam de políticas públicas para as mulheres (Sonaira) e a área social (pastor Gilberto Nascimento Jr, do PSC).

A secretária Sonaira, titular de uma pasta que tem “mulher” no nome, declarou inúmeras vezes que o feminismo “é o grande genocida do nosso tempo”, já fez vigília em frente a um hospital que realiza o aborto legal na capital paulista e organizou um evento pró-vida chancelado pelo governo estadual. Sonaira é apenas a face mais estridente do conservadorismo religioso que se instalou no executivo paulista. Já escrevi aqui neste Observatório Evangélico, por mais de uma vez, como o Estado de São Paulo vem investindo pesadamente para que práticas religiosas sejam apresentadas e perpetuadas como políticas públicas para populações vulneráveis.

O Programa Recomeço, que cuida da dependência química do que se convencionou chamar de cracolândia, é o melhor exemplo. Vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado e fundamentado no acolhimento em comunidades terapêuticas, religiosas em sua maioria, o programa tem 1420 vagas conveniadas com a organização social Samaritano São Francisco de Assis. De acordo com dados de abril, somente 56% delas estavam ocupadas. Mesmo assim, a abertura de outras 270 vagas já está sendo negociada com a entidade.

Como também já relatei aqui, essa base religiosa deixa muita gente de fora do atendimento: não cristãos, não crentes e todos aqueles que não se enquadram na moral cristã difundida nas igrejas, como homossexuais e pessoas trans, todos parte do imenso emaranhado que é o público que frequenta as cracolândias. E faz exatamente o oposto do que seria esperado de uma política pública eficiente e que deve ser baseada na inclusão.

Justiça seja feita, o modelo de acolhimento em comunidades terapêuticas não é uma “invenção” do governo paulista atual. O Recomeço foi criado na gestão do agora vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB). E outros governos têm adotado o modelo como ideal e único para atendimento da população dependente química. Tanto que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criou o Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas, para o arrepio do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Federal de Psicologia, entre outros.

O Brasil é considerado um estado laico. Esta afirmação está amparada nas garantias constitucionais de liberdade religiosa citadas nos artigos 5° e 19º da Constituição Federal. Mas a mesma Constituição, promulgada “sob a proteção de Deus”, mostra que no estado laico brasileiro a religião teve, tem e sempre terá grande relevância política. Tanto que o pastor Bongarrá nem teria muito trabalho por aqui. E a julgar pelos investimentos do Estado de São Paulo, a missão está basicamente cumprida.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte do GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo), ambos grupos de pesquisa vinculados ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte do GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo), ambos grupos de pesquisa vinculados ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP.