O louvor brasileiro na periferia do mundo

O louvor brasileiro na periferia do mundo
Cantor brasileiro Marco Telles

“Para de traduzir e vai cantar música que nasce no Brasil”. Assim iniciava um corte viral que tornou-se tema de debates espinhosos sem vislumbres de resolução. Quem proferia a frase a plenos pulmões era Marco Telles, que é cantor e compositor, além de fundador e diretor do nobilíssimo Coletivo Candiero. O evento era a conferência Overmission, que aconteceu em São Paulo - o nome em inglês não deixa de ser uma ironia histórica.

Sem pretender inflamar a discussão, gostaria de acrescentar contexto ao debate. Acredito que os elementos em foco, que giram em torno da relação entre tradução e nação (que, como lembra Marcel Detienne, é nascimento), se não forem interpretados à luz do mundo que os engendra, ficam como que suspensos no ar e sujeitos a todo tipo de elucubração vazia. Um passo preliminar, porém, é jamais reduzir as obras ao seu contexto social: ao invés de ouvir a música evangélica como reflexo de “relações reais” externas, cabe ouvi-la perseguindo o que nos ensinou Antonio Candido, isto é, que o social “importa, não como causa, mas como elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.”

Uma pergunta ainda não realizada é: o que a persistência do paradigma estético da tradução na história da música evangélica nos diz sobre o louvor brasileiro? Lembremos: o gesto fundador da hinologia evangélica no Brasil, o hinário Salmos e Hinos, foi publicado em 1861, pelos missionários Robert Kalley e Sarah Kalley. Com atualizações ao longo do tempo, a maioria de seus hinos é uma tradução ipsis litteris ou uma versão com letra em português de músicas de compositores como Lutero, Goudimel, Tomás Selle e etc… Assim, como verificou Henriqueta Braga em seu seminal “Música sacra evangélica no Brasil” (“os compositores evangélicos nacionais [surgiram] em menor proporção do que os poetas sacros”), nota-se que o problema não é somente de ordem lírica, mas também musical.

Momentos luminosos de tentativa de constituição de um louvor nativo podem ser apontados, tanto nos empreendimentos hinológicos tradicionais organizados por denominações quanto nas sucessivas gerações de compositores de matriz protestante. Mas seria errôneo tratar esses momentos como uma vitória definitiva. As insistentes tentativas, quase sempre marginais - em seu próprio tempo ou tornadas marginais posteriormente -, confirmam o dizer profético de Jaci Maraschin em sua introdução ao hinário O Novo Canto da Terra: quanto à constituição de uma música brasileira e boa, “estamos sempre na procura dessa música”.

Interpretações excessivamente teologizantes tendem a obnubilar respostas possíveis. Se ainda são teologias de origens euroamericanas que nos informam, as respostas às perguntas sobre um culto ideal não serão suficientemente radicais em compreender o verdadeiro dilema brasileiro, que é o de estar submetido ao que Alfredo Bosi identificou como a dialética entre o “sistema colonial” e a “condição colonial: de um lado, um país cuja base social foi formada por “tráfico e senzala, monopólio e monocultura”; do outro, “as múltiplas formas concretas da existência interpessoal e subjetiva, a memória e o sonho, as marcas do cotidiano no coração e na mente, o modo de nascer, de comer, de morar, de dormir, de amar, de chorar, de rezar, de cantar, de morrer de ser sepultado.”

Esta dialética produziu uma condição de dependência em que não somente nos formamos nacionalmente com característico atraso econômico, mas que nossos ímpetos estéticos sempre foram marcados por esforços antagônicos de imitação do estrangeiro ou de afirmação de uma singularidade nacional. Que estejamos sempre às voltas com a tentativa de formação de uma hinódia com contornos ditos brasileiros é prova inequívoca do nosso caráter de dependência.

Para fugir das asserções simplórias de nacionalismo e ufanismo estético, que caricaturizam temáticas, ritmos e líricas, convém ser capaz de insistir na crítica daquilo que ainda persiste de colonial no louvor brasileiro. Para isso, a discussão talvez não possa ser reduzida ao dilema entre tradução e natividade, pois a opção por cantar em português não é suficiente, haja vista que mesmo as formas usuais de representação da suposta “brasilidade” estão ainda impregnadas de colonialidade, se assentando sobre ficções fundadoras e violentas como a ideia de “democracia racial”.

À guisa de contribuição para uma resolução possível, gostaria de relembrar a contribuição de Antonio Candido: “um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores.” Para isso, precisamos nos dobrar à tarefa de pensar o louvor brasileiro como uma tradição que, mesmo em seus estrangeirismos, luta firmemente para se constituir.

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Arthur Martins é graduado em Filosofia (UCB) e mestrando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), onde desenvolve pesquisa sobre cultura, música popular e religião. É compositor, músico e cantor do Rio.