O racismo estrutural no passado e no presente: uma visão religiosa

A discussão sobre o racismo me inquieta bastante, isso porque para mim, por princípio, todos os homens são iguais em suas potencialidades e semelhantes no que se refere à natureza humana que Deus lhes concedeu. Reconheço o risco dessa afirmação, ainda mais por eu ser um homem branco, cujos descendentes famliliares vieram da Europa, provavelmente estimulados por projetos de branqueamento da população defendidos por políticos e pelas elites brancas do nosso passado pós-abolicionista. Esse meu entendimento, embora para alguns possa soar assim, não derivou de qualquer intenção negacionista. O leitor pode constatar ou questionar isso nas linhas que seguem, em que proponho uma breve reflexão sobre a questão racial e sobre o lugar que essa questão ocupa nos espaços das igrejas evangélicas. Peço desculpa de antemão se por acaso minha intervenção suscitar algum incômodo pelo fato de eu não possuir “lugar de fala” para tratar da experiência de sofrer o racismo. Ao mesmo tempo, entendo que um problema desse gênero deveria ser enfrentado também pelas pessoas brancas. De qualquer forma, procurarei esclarecer, mais adiante, como a questão do racismo tem estado presente ao longo do meu trabalho como líder religioso.

Minha convicção sobre a igualdade entre os homens se inspira muito naquilo que eu acredito que deveria ser um valor indiscutível para as igrejas, a ideia de que Deus criou o ser humano em sua pluralidade, em sua diversidade, e que, portanto, qualquer tipo de discriminação atentaria contra a criação divina. Contudo, o reconhecimento da igualdade entre os homens e da compreensão de que para Deus todos são dignos, por mais correto que nos pareça, foi desde o princípio e durante muito tempo uma ideia ausente da nossa história.

Muitos brasileiros podem não ter uma noção clara disso, mas quando pensamos na extensão cronológica da nossa história, para melhor exposição considerada aqui desde o marco simbólico da chegada dos portugueses em 1500, quase quatrocentos anos dela transcorreram sob a vigência de um regime escravista, alicerçado no trabalho da mulher e do homem negros. Para além disso, o violento processo de colonização que aqui se instaurou foi responsável pelo massacre e escravização de milhares de indígenas. Quando observada em relação ao tempo cronológico de nossa história, a escravidão, por ter se estendido por tanto tempo, criou uma mentalidade e uma cultura que, infelizmente, não morreu em 1888, quando a abolição foi proclamada. Essa é uma das razões pelas quais podemos falar de racismo estrutural. Essa expressão dá conta de aludir a uma mentalidade que se instaurou, desde a gênese de nossa sociedade, em todos os âmbitos da vida, e que se perpetuou até os tempos presentes.

Infelizmente, um número grande de brasileiros não têm uma percepção desse histórico, o que leva o debate sobre o racismo a se restrigir muitas vezes a um confronto raso entre aqueles que atestam a sua existência e aqueles que buscam negá-lo – o racismo existe, o racismo não existe, e ponto. A discussão sobre o racismo tende a ganhar em qualidade quando ela mobiliza aspectos dessa problema capazes de nos fornecer uma perspectiva mais ampla, que nos permitira entender a presença dessa questão em nossa história e também os processos pelos quais compreendemos a lógica global da escravidão.

Mas afinal, o que é racismo? A raiz da palavra evoca a noção de raça e tem um vínculo direto com argumentos verificados em diferentes momentos da história da humanidade, que buscaram validar a ideia de que, no que tange ao conjunto dos seres humanos, estes seriam divididos entre raças superiores e raças inferiores. Em linhas gerais, essa concepção de desigualdade natural entre os homens já existia desde a antiguidade – no começo da modernidade, fora ela que justificara o estabelecimento da empresa escravista no Brasil colonial e nas outras colônias da América Latina e Estados Unidos -, mas um dos marcos desse processo se deu no século XIX, com a emergencia do racismo científico, muito, mas não só, devido àquela que foi ao mesmo tempo uma das grandes revolucões na história da ciência e uma das grandes influenciadoras das ideias racistas, a teoria da evolução formulada pelo naturalista Charles Darwin e apresentada ao mundo em 1859, com a publicação do livro A origem das espécies.

Para a teoria darwinista, o ser humano, isto é, a espécie homo sapiens, surgiu de um longo processo evolutivo, que se deu ao longo de milhares de anos. Em algum ponto dessa dinãmica entendida por Darwin como um movimento de adaptação da vida às adversidades do meio, o ser humano, como conheçemos hoje, surgiu, de um mesmo ancestral que temos em comum com os macacos.

A respeito da difusão dessa tese, é muito interessante observarmos como ela também foi uma resposta ao criacionismo, corrente de pensamento hegemõnica na época, muito devido ao poder cristãos. Desse modo, a teoria de Darwin atendeu aos interesses de alguns pensadores iluministas, descontentes com o poder da Igreja Católica e críticos do criacionismo.

Porém, o século XIX que assistiu ao surgimento da teoria da evolução também foi o século em que foram gestadas muitas das “teorias” que estão na base da legitimação do racismo. Alguns dos autores dessas supostas teorias não exitaram em se apropriar da ideia central do dawirnismo, a teoria da evolução, transpô-la para o campo da cultura humana a fim de com isso justificar a escravidão e acrescentar um ingrediente a mais, agora de verve “científica”, à ideia de superioridade e inferioridade das raças. A maneira mais tacanha e brutal de se realizar esse movimento foi se difundindo a ideia de que, primeiro, a raça humana descenderia do macaco, segundo, que o negro seria descendente direto do macaco, e terceiro que os brancos representariam um estágio evolutivo superior, no qual o homem havia se despido de sua semelhança com o macaco.

As consequências drásticas dessa ideia para a história que sucederia são bem conhecidas. O nazismo de Adolfo Hitler, para mencionarmos apenas o caso mais emblemático e extremo, apoiaria-se justamente nessas “pseudoteorias evolucionistas” para decretar a superioridade da raça alemã e a inferioridade dos judeus e negros. O objetivo do nazismo era eliminar as raças consideradas inferiores, os povos que não coperariam para a evolução do ser humano, valorizando ao mesmo tempo a raça branca, considerada por Hitler e seus seguidores como a raça mais evoluida.

Façamos um salto temporal para o presente ano de 2022 e nos afastemos desses fatos do passado. No último dia 2 de agosto, um homem de 39 anos foi flagrado nas dependências da biblioteca Mário de Andrade,localizada no centro da cidade de São Paulo, proferindo uma sequência aterradora de falas racistas. Conforme muitos veículos noticiaram, naquele mesmo dia, Wilho da Silva Brito, o indivíduo em questão, foi detido e encaminhado para uma das delegacias da capital. No momento da detenção, ele lia um exemplar de Minha Luta, livro em que Adolfo Hitler expõe suas ideias racistas e antissemitas. Qualquer discussão séria sobre o racismo estrutural não pode negligenciar essas presenças do passado no nosso presente.