Coletivo responde a publicação presbiteriana

Coletivo responde a publicação presbiteriana

Na sua edição de abril, o Jornal Presbiteriano divulgou um artigo que atribui a culpa pela deterioração da sociedade ao feminismo. Esse texto provocou diversas reações e críticas dentro do meio. Em resposta a isso, a Rede EIG enviou uma declaração ao Observatório Evangélico, que pode ser vista abaixo:

Opinião sobre “O dia 8 de março – a propósito da recente celebração do Dia Internacional da Mulher – Ernesto de Jesus Herrera”, publicado no Jornal Brasil Presbiteriano (abr/2024).

No que pensou o editor do Jornal Brasil Presbiteriano (edição n° 833 – abril de 2024) para publicizar algo assim? O texto “O dia 8 de março – a propósito da recente celebração do Dia Internacional da Mulher”, de autoria de Ernesto de Jesus Herrera, é cafona, abobalhado e desinteligente. E isso, para dizer o mínimo.

São o machismo e a misoginia que escorrem em várias frases do texto mencionado. E não adianta em nada escamotear o debate culpabilizando o comunismo, o marxismo, o feminismo (o mais adequado seria usar a referência no plural) como sinalizado nas ideias do referido autor. Ele achou adequado colocar tudo em um único embornal e preferiu não mencionar, por má-fé, ignorância ou cegueira ideológica, a existência de diversos feminismos, inclusive aqueles que tão bem resgatam, na perspectiva das teologias feministas e da hermenêutica da suspeita e da imaginação, a valoração das mulheres. As teólogas feministas estão aí justamente para evidenciar as desigualdades de gênero pecaminosas e para colocar em relevo que desde o cristianismo primitivo se têm notícias de apóstolas e diaconisas entre outras lideranças importantes, fazendo com que as imagens dessas mesmas mulheres invisibilizadas fossem reverberadas e valorizadas pelo transcorrer da história do mundo ocidental judaico/cristão.  

Vale destacar que no cristianismo são todas as mulheres criadas à imagem e semelhança de Deus e esse mesmo Deus que é o Deus do amor – uso a referência aqui do amor como dom supremo - não faz acepção de pessoas, ataques ou promove guerras como infelizmente bem querem alguns. Nos ritos da Reforma Protestante do séc. XVI, embora de forma convenientemente dificultosa no percurso dos tempos, as mulheres são perfeitamente hábeis a exercer o sacerdócio universal das santas e dos santos e seguir, a partir daí, a sua própria vida espiritual e religiosa sem que um ‘alecrim dourado’ arbitre por e sobre elas. Dado esse último grifo, importante trazer a memória que somente em 3 de novembro de 2002, o nome de Marie Dentière (1495-1561), considerada a primeira teóloga reformada, foi gravado no Memorial da Reforma Protestante de Genebra – Suíça, ao lado das figuras célebres do movimento como Jan Hus (1373/75 – 1415) e John Wycliffe (1328-1384) e das estátuas de João Calvino (1509-1564), Guilherme Farel (1489-1565), John Knox (1514-1572) e Huldrych Zwingli (1484-1531). 

Também manifesto o meu mais profundo constrangimento em detalhar que o mesmo texto usa como subterfúgio a costumeira e sublimada ideação elogiosa àquelas mulheres virtuosas nas figuras de uma esposa que sustenta o homem em "oração e incentivo constante", das filhas, netinhas e até mesmo da sogra para massacrar TODAS as mulheres reais - de corpos e espíritos livres - com a afirmação de que devido as mesmas, as MULHERES NO SENTIDO GERAL, ao menosprezarem "a pureza, o recato e a honra", na observação particular do referido autor (claro!), são a causa de “maior deterioração de nossa civilização”. Em 2024, em pleno século 21, ainda existem argumentações assim. Pasmem! E eu fico aqui me indagando de onde o autor do texto tirou essa ‘pérola’ ou qual foi o ‘método’ que o levou a insinuar algo de forma tão generalizada, extremamente desrespeitosa e ofensiva.  Confesso que se não fosse trágico, seria apenas risível!

Não posso deixar de sinalizar que, neste sentido, o referido texto me lembrou um outro. Recordo-me daquela pachorrenta Nota de Esclarecimento (jun/2022), dada pela Comissão Executiva do Presbitério de Santo (PRST), da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) quando da prisão decretada e executada do ex-ministro Reverendo Milton Ribeiro, face aos possíveis crimes cometidos em sua própria gestão do Ministério da Educação e Cultura do Brasil, envolvendo corrupção, bíblias e barras de ouro. Para as pessoas mais desavisadas, estou me referindo à investigação de suposto esquema paralelo de obtenção de verbas envolvendo dois outros pastores, em caso que está sendo investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Para além do vergonhoso escândalo para toda a comunidade presbiteriana, se faz importante salientar que a nota saiu em defesa do ex-ministro alegando entre seus atos de honradez, p. ex., a menção em ser ele “trabalhador e construtor” de família, citando esposa, filhas e também a ação de “que semanalmente visita sua mãe, professora aposentada e idosa, com providência de mantimento e, muitas vezes, fazendo a refeição dela”. Ou seja, quando conveniente, as mulheres são sempre louváveis e citadas para ressarcir a imagem moralmente perdida ou justificar argumentações descontextualizadas, difamatórias e preconceituosas de alguns homens presbiterianos, felizmente nem todos e graças a Deus por isso. 

Peço as devidas escusas por citar aqui e assim mães, filhas, netas, sogras (notas ou textos parecidos também mencionam regularmente as meninas, as tias, as avós e as irmãs), que, na maior parte das vezes também sofrem e choram as lágrimas insubmissas de tantas violências derivadas do falocentrismo, de desprezo, desinformações e atitudes persecutórias nos variados espaços de sociabilidade religiosa e das práticas de fé de nossa seara. Afinal, as mulheres presbiterianas, nas esteiras das últimas reuniões do Supremo Concílio (SC/IPB), não podem mais distribuir os elementos da Santa Ceia ou mesmo acessar os púlpitos de suas igrejas conforme a aprovação, não sem questionamentos e apontamentos de erros substanciais, dos documentos CCII E CCLII – SC/IPB 2022. 

Como presbiteriana e teóloga FÉminista, profundamente me entristeço, pois, sei que algumas de nós foram/são impedidas de manifestar os seus dons e talentos em nossas igrejas/mães, pois a maioria dos pastores e presbíteros (todos homens) reunidos naqueles contextos decisórios entre os anos de 2018 e 2022 e na reunião da Comissão da Executiva - CE/IPB posterior (2023), forjaram, sob falseados argumentos, que a igreja não estava agindo de forma bíblica, negando vários espaços às mulheres. Diante deste contexto, o que devemos esperar da próxima reunião da CE/SC-IPB que se realizará na cidade de Londrina – Paraná, entre os dias 16 e 19 de abril de 2024? Mais constrangimento às mulheres?

Nestes casos especificamente, qualquer semelhança não é apenas mera coincidência com o nosso contexto social e político intimamente ligado e conveniente polarizado sob as bases das ideias de fundamentalistas que sustentam a extrema direita mundial e a galopante instrumentalização da Bíblia em mais uma versão aterrorizadamente machista, sexista e racista. Aqui, vale até mesmo pedagogicamente repercutir outras informações que considero relevantes: várias mídias sociais e jornais de grande circulação têm noticiado ultimamente que Donald Trump, um dos maiores representantes da relação acima destacada entre a Bíblia e os movimentos políticos da extrema direita mundial, foi formalmente acusado de subornar uma atriz pornô para que se ocultasse relação extraconjugal com ela no ano em que ele foi eleito presidente dos Estados Unidos (2016). Um detalhe deste episódio chama a atenção, pois ao que tudo indica, esse visceral ‘defensor’ da chamada ‘família tradicional’ teve um caso extraconjugal no período em que sua esposa praticamente estava no puerpério e aos cuidados do bebê do casal, em 2006. |Outro detalhe: na semana passada, também cabe o devido acréscimo, o referido ex-presidente dos EUA, em pré-campanha presidencial, lançou a “Bíblia do Patriota”, com a intenção de melhorar as despesas de sua pré-campanha política. 

De fato, a pureza, o recato e a honra são ‘exigidos’ apenas às mulheres nos clubes da machonaria cristã. Dante dessas exemplificações, enfim, retomo as minhas motivações para escrever esse texto, aproveitando para manifestar a minha solidariedade à todas as mulheres, especialmente as presbiterianas, que se sentiram aviltadas com o parvo texto e que definitivamente não deveria ter sido aprovado para o Jornal Brasil Presbiteriano. Nesse sentido, infelizmente, nem o arquivamento do mesmo pode minimizar a celeuma recém criada. E em tempo: é justamente por pensamentos assim, como os elencados no texto da edição abril/2024 do referido jornal, que existe o 8M – Dia Internacional das Mulheres – dia de todas as mulheres. A data é um marco simbólico importante, embora todos os dias e ano após ano precisamos fincar estacas em chão árido para o enfrentamento de todos às hipocrisias que cercam as nossas existências. 

Juntas e na lógica da coletividade, somos mais! Somos fortes e resistiremos pelos direitos religiosos de todas as mulheres.

E, para que fique registrado: Não, definitivamente os feminismos e as mulheres não são a causa de a sociedade se tornar “cada vez mais decadente, imoral e pecaminosa” como afirmado pelo autor do texto. Basta de dissimulações! 

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Lauana A. Flor é teóloga pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestra e doutora em Ciências da Religião - UMESP. Feminista, mãe de menina e casada há 17 anos com o mesmo marido (ohhh!). Membra da Associação Mulheres EIG – Evangélicas Pela Igualdade de Gênero (@mulhereseig) e do Coletivo de Mulheres Presbiterianas do Brasil (coletivo_mpb).