Os desafios de uma educação religiosa libertadora

O cristianismo tem um livro. A Bíblia é, para uma grande parte dos cristãos, um único texto, sagrado, imutável, inerrante, coeso e normativo. Começo por aqui para tentar explicar os desafios de responder às boas e necessárias provocações do Dr. Callahan. Escrevi estas linhas iniciais para tentar fundamentar meu pensamento naquilo que julgo ser o ponto de apoio dos conservadorismos cristãos que, ao longo dos séculos, conduziu a cristandade para uma religiosidade capitalista: uma leitura fundamentalista e má intencionada da Bíblia.

O protestantismo foi inicialmente abraçado  e moldado pela classe burguesa europeia. Isso implica dizer que seu espírito é pré-capitalista, sua ética é voltada para o acúmulo de bens e sua mensagem é construída para a subserviência aos poderosos.

Como bem observou o Dr. Callahan, o golpe parlamentar de deposição da presidenta Dilma Roussef foi liderado por um representante da Ala Evangélica, o Dep. Eduardo Cunha. Vale a pena lembrar que alguns dos favoráveis ao Impeachment trouxeram nas sua justificativas a preservação dos “valores cristãos”. Alguns destes parlamentares, como o próprio Dep. Eduardo Cunha, foram denunciados, investigados, julgados e presos por corrupção.

O caso é que, como ficou evidente, a Presidenta Dilma Roussef não foi retirada do seu posto por conta de ataques aos valores religiosos, ou por promoção de pautas progressistas, muito menos por corrupção, e sim por inabilidade política para dar aos césares do Congresso Nacional sua porção diária do erário público.

Mas o discurso facistóide pegou bem entre os conservadores cristãos, carentes que estavam de uma cruzada medieval. A esquerda, o comunismo e o progressismo que, para a maioria dos eleitores do atual presidente, não passa de palavras vazias de história e conteúdo, são o mal a ser combatido pelos cidadãos de bem, zelosos da fé cristã. Ou seja, a emergência das discussões sobre as questões de gênero e sexualidades unida à liberdade e visibilidade das religiões de matriz africana, é o que realmente preocupa essa parcela dos cristãos. Neste ponto entra a Bíblia como posse de uma parcela autodenominada de fiel.

Na última década, ou mais, os segmentos pentecostais e neopentecostais encontraram a sua parceira de dança na ala oposta da teologia, os Reformados. É por isso que na análise do Dr. Callahan ele percebeu que, se os soldados do capitalismo são pobres e pretos, identificados religiosamente com os pentecostais e neopentecostais, os generais são brancos e burgueses, identificados com as denominações batista e presbiteriana.

De um lado, a experiência religiosa que, em muitas vezes, escapa da interpretação escolarizada do texto sagrado; do outro, uma espiritualidade setecentista, ascética, contida, intelectual. Os primeiros querem alcançar os benefícios do céu aqui na terra através da meritocracia – seja pelo esforço no trabalho, seja no cumprimento da “lei do Senhor”. Os segundos querem manter os seus espaços de privilégio como sendo a “obra do Senhor”, o resultado da graça divina e sua missão, como um Destino Manifesto.

Ambos detêm o poder da comunicação de massa nas suas mãos. Os pentecostais e neopentecostais investiram e investem muito em espaços na TV, rádio e internet. Os batistas e presbiterianos realizaram uma “caça as bruxas” nos Seminários e, gradativamente, foram retirando reitores e docentes alinhados ao progressismo dos seus postos. Hoje a voz mais audível dos púlpitos evangélicos são as vozes destes grupos. Sendo o vocabulário das igrejas protestantes majoritariamente pentecostal, e os pastores formados nos seminários teológicos são induzidos a abraçarem a ortodoxia reformada do século XVII, como educar politicamente os frequentadores dos templos cristãos?

Aí reside o dilema do púlpito das igrejas moderadas por pastores que não são aliados ao status quo. A Escola é Bíblica, e a Bíblia é clara sobre a opção de Deus pelos pobres, orfãos, viúvas e estrangeiros. Mas a leitura da Bíblia é, hoje mais que nunca, mediada pela linguagem triunfalista pentecostal e/ou pelo escolasticismo reformado – sem corpo, sem história, sem vida concreta.

Transformar esse espaço num lugar de diálogo e construção de consciência exigiria a reconstrução da formação teológica dos líderes religiosos. Como as liberdades religiosa, de reunião e de culto são asseguradas pela Constituição, a multiplicação de igrejas, pastores, apóstolos, bispos e afins sem formação não têm mecanismo de contenção. Os Seminários seriam o lugar de formação para a expansão de uma outra consciência, mas a maioria dos líderes religiosos se abstém de passar por uma formação acadêmica, preferindo empreender no “mercado gospel” como autodidata

Então o que temos são congregações lideradas por leigos e que entendem que a Bíblia autoriza a exploração de seus corpos e que as autoridades devem ser respeitadas e seguidas mesmo quando retiram seus direitos trabalhistas com uma mão empunhando uma Bíblia com a outra. Como as esquerdas geralmente consideram a moralidade como definida pelos sujeitos, e as religiosidades como questão de foro íntimo, não há, no campo de visão, incursões deste espectro político para além dos acenos para obtenção de votos.

Quando um líder de congregação tenta mudar os temas e materiais didáticos da Escola Bíblica, ou até mesmo retirá-los, encontra uma resistência não no campo da metodologia, mas da tradição, da história. As igrejas são sempre resistentes às mudanças, são sempre arrastadas pela sociedade, são depositárias do tempo passado e por ele suspiram.

Os profetas menores são guardados na prateleira do êxtase misterioso do passado, atualizado no discurso da vitória sobre a escassez, mas raramente na prateleira da denúncia contra o pecado estrutural da sociedade atual.

Jesus é visto como tendo sido intocável pelas necessidades humanas, como inatigível pela opressão religiosa e política do seu tempo. Seu sacrifício é assimilado como encenação – indolor, compulsório, auto-realizado – e não é percebido como resultado de processos condenatórios fraudulentos, orquestrado pela elite religiosa aliada aos poderosos, cuja finalidade não era defender a pátria, família e os valores judaicos, mas o seu próprio quinhão dos sacerdotes. Não percebem os sinais messiânicos e os ensinos de Jesus como denúncias da situação de opressão, mas os lêem como espetáculo e os buscam nos templos. “Jesus” foi sequestrado há muitos séculos por uma elite religiosa aliada à elite do capitalismo, e a igreja não quer pagar o preço do seu resgate, tentando “pactuar com o domínio do capitalismo e dos seus catalizadores políticos.”

O caminho sugerido pelo Dr. Callahan exige mais que vontade e interesse dos pastores e padres progressistas, mas reformulação dos cursos de formação teológica, incentivo à produção de novas literaturas para as igrejas, mudança no ritmo das atividades eclesiásticas priorizando a reflexão para a transformação das realidades, além de uma rede de apoio e suporte material aos religiosos prejudicados por alguma perseguição de cunho político.

O caminho é longo e árido, mas o ponto final, uma cristandade bem-educada, vale a pena.