Os sucessos gospel de 2023

Um passeio sonoro com ouvidos atentos por uma playlist chamada “O Melhor de Sucessos Gospel 2023” na plataforma de streaming Spotify pode nos ensinar muito sobre o fenômeno social dos evangélicos no Brasil. A playlist, composta por 50 canções, acumula milhões de streams e nos fornece uma cartografia narrativa, afetiva e sonora do louvor brasileiro.

De primeira, é possível identificar algumas singularidades. Em termos de gênero, 31 das canções possuem mulheres como artistas principais ou featuring (sem contar grupos como Preto no Branco, Colo de Deus, etc., que possuem mulheres em suas formações), o que representa 62% da playlist.

A minutagem média das canções também é notável: 5m38s. Para efeitos de comparação, playlists de sucessos de 2023 de segmentos como o sertanejo e o pop possuem minutagem média de 3m10s. Levando a sério uma queixa corrente de produtores e críticos sobre a progressiva aceleração das músicas atuais, notamos um movimento contrário da indústria gospel ao não seguir o atual curso aceleratório. Certamente isso se deve à presença dos chamados espontâneos nas canções do segmento, que incluem ministrações, orações e improvisações nas músicas. Ao verificar o sujeito cancional - ou “eu-lírico” - das canções, identifica-se que 35 das canções (70%) estão na primeira pessoa do singular, excetuando aquelas canções de mesma forma pronominal que falam do ponto de vista de Deus. Para confirmar esta constância, das 100 palavras mais recorrentes, a palavra “eu” aparece em segundo lugar (581 ocorrências), compartilhando um campo associativo com “me” (306), “meu” (168), “mim” (128) e “sou” (109). Ainda sobre as palavras recorrentes, insistindo em seus valores semânticos, observa-se um conflito constante entre o que poderíamos chamar de instâncias da transcendência e da imanência. De um lado, termos como “santo” (89), “nome” (71), “glória” (51) e “céu” (36), utilizados costumeiramente em referência a Deus. De outro lado, “aqui” (57), “vida” (45), “agora” (37) e “coração” (34) marcam referências à experiência humana, com apelos às dimensões do espaço, do tempo e do corpo.

O sociólogo britânico Simon Frith, em seu seminal artigo “Towards an aesthetic of popular music” (1987), aponta quatro funções sociais da música popular, das quais reterei três: primeiro, canções nos auxiliam na formação de identidades individuais e de grupo, produzindo um senso de reconhecimento e pertencimento em um movimento duplo de inclusão e exclusão. Segundo, canções nos ajudam na produção de uma gramática afetiva compartilhada sobre temas diversos, moldando emoções públicas e privadas. Terceiro, canções servem de guia para uma outra organização temporal, pois formam memórias coletivas e individuais, indexando acontecimentos marcantes e modelando experiências e expectativas do tempo.

Não é difícil evidenciar como as canções gospel produzem um senso compartilhado de identidade. De um ponto de vista individual há o reconhecimento ontológico dos sujeitos a partir da vida com Cristo - como a canção “Eu Tenho Pai” de Gabriela Gomes diz: “agora eu sei quem sou”. De um ponto de vista coletivo há uma reunião dos sujeitos reconhecidos sob a noção de povo, igreja ou de uma comunidade que tem a vitória por destino inevitável (“povo exclusivo de Deus”, diz a canção “Eis-me Aqui” de Valesca Mayssa).

A gramática afetiva implicada nas canções gospel não apenas expressa emoções individuais, mas constrói a forma com que essas emoções podem ser articuladas. Como canta Sarah Beatriz em “O Vento Vai Passar”: “tá doendo, eu sei”. Sobre isso, ideias como sofrimento, provação ou luta fazem da vida do crente um caminhar incessante sob o fio da navalha. Das durezas da vida, uma certeza comum: “antes do alívio tem o sofrimento”, como canta Maria Marçal em “Deixa”.

Já a temporalidade aparece de muitas maneiras nas canções analisadas. De um lado, contínuas menções à presença de Deus no tempo presente sugerem demasiado presentismo, o que se confirma com uma menor incidência de referências à vida no além e ao retorno de Jesus. Apesar disso, percebe-se que esse presentismo não traduz-se em uma pletora de imagens narrativas concretas referentes ao cotidiano, como no excepcional rap “Mateus 6.6” de Victin, em que há versos como “Eu e meu Deus lá na praia da Barra / com biscoito globo e mate” ou “no pé, só fé, humildade minha Kenner”. Ainda assim, escassas alusões à vida no paraíso post mortem surgem como ferramenta retórica de convencimento do ouvinte, como em “Limitado” de Nesk Only: “Cê sabe bem que Jesus tá voltando / (...) Quando vê, tá tarde, cê acaba ficando”.

Há ainda muitos aspectos - sobretudo de ordem propriamente musical - que podem ser observados. Em direção à melhor compreensão do fenômeno evangélico no Brasil, convém sempre observar o que as canções evangélicas dizem e fazem.

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Arthur Henrique Martins é graduado em Filosofia (UCB) e mestrando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), onde desenvolve pesquisa sobre cultura, música popular e religião.