Papel das igrejas na transformação social é superestimado

A ideia de que as igrejas evangélicas protagonizam uma importante transformação social por proporcionarem aos mais pobres o mínimo de bem-estar que a sociedade brasileira recusou-lhes parece traduzir uma leitura excessivamente otimista de uma realidade repleta de equívocos e contradições.

Concordando em parte com tais leituras, acredito que de fato precisamos considerar a importância do papel transformador das igrejas na vida dos mais pobres. Penso que talvez elas sejam um dos únicos lugares da sociedade brasileira onde as questões existenciais e afetivas da população mais vulnerável são acolhidas e refletidas. Mesmo quando as igrejas se mostram incapazes de fornecer respostas para as angústias dos mais necessitados, elas ao menos proporcionam um espaço de reflexão, o que não é pouca coisa. Nas igrejas os fiéis encontram a liberdade para expressar as dores surgidas das dificuldades que atingem suas vidas, recebendo, em contrapartida, a escuta e algum incentivo capazes de aliviar sua dor. O papel das igrejas como centros terapêuticos, portanto, é inquestionável.

Porém, as ações concretas dessas igrejas exige que não nos detenhamos diante desse argumento. No meu entender, a indagação do lugar que as igrejas ocupam nas periferias e nas zonas mais pobres evoca um problema gravíssimo cujo sentido revela, na verdade, a face negativa do processo aqui aludido. Esclareço que para defender meu ponto de vista me baseio sobretudo no que tenho observado pela proximidade que mantenho com cerca de 30 líderes de comunidades evangélicas diversificadas, cada qual imersa em realidades bastante específicas.

Indo direto ao ponto, as igrejas evangélicas parecem estar perdendo uma grande oportunidade de desempenhar seu papel de comunidade terapêutica de modo a proporcionar aos evangélicos uma consciência crítica a respeito dos problemas existenciais que eles vivenciam. Esses problemas, como não poderia deixar de ser, estão entrelaçados às condições do nosso presente histórico e são consequência do desemprego, da fome, dos conflitos familiares agravados pela desigualdade social, da deterioração das relações sociais do cotidiano.

O fator que mais contribui para o agravamento desse quadro parece ser a atuação de alguns líderes religiosos que pretendem pensar pela maioria e que creem fazer isso quando são autorizados por essa maioria, composta em grande parte por pessoas semi-analfabetas massacradas pelo capitalismo liberal selvagem.

Está claro que as condições do presente histórico interferem decisivamente nas ações realizadas pelas igrejas. As carências e as demandas afetivas e existenciais dos evangélicos precisam ser expostas nas igrejas, afinal, essas pessoas têm a necessidade de expressar seus conflitos na esperança de assim encontrar possíveis soluções. Porém, aqueles que dizem representar o pensamento da maioria têm se mostrado incapazes de promoverem uma consciência que permitisse ao conjunto dos fiéis compreender suas dificuldades a partir de um olhar crítico sobre o contexto em que vivem.

Entendo que as igrejas estão perdendo uma grande oportunidade porque penso que elas dispõem de tudo para fazer da religião um meio de conscientização e transformação social, assim como pretenderam fazer do catolicismo os cristãos inspirados pela Teologia da Libertação de Paulo Freire, pensador pelo qual eu tenho imensa admiração. As igrejas poderiam corrigir o insucesso das escolas nessa empreitada, porém o fenômeno da evasão das igrejas, em especial por parte de jovens evangélicos, indica que elas estão trilhando o caminho oposto.

Hoje, a evasão de jovens das igrejas evangélicas demonstra que a juventude não ocupa mais o lugar de protagonismo no fazer religioso que ocupou em tempos passados. Não havendo uma mudança drástica na postura hegemônica das igrejas, esse movimento de evasão tende a crescer, o que acabará representando o enfraquecimento e o fracasso das igrejas em fazer da juventude a força motora de transformação social.

Por quê? Exponho minha opinião recorrendo àquela imagem da pirâmide social tão frequente nas aulas de história e sociologia. Antes de mais nada, o problema aqui exposto nos faz recordar que as igrejas também refletem a realidade social brasileira e seus conflitos. Não deveria causar surpresas, portanto, o reconhecimento da vigência das hierarquias de poder e dos antagonismos sociais no interior das igrejas. Na base da pirâmide social brasileira estão os despossuídos, ou, no nosso caso, a massa de evangélicos provenientes dos estratos mais pobres da população. O meio da nossa pirâmide é ocupado por aqueles líderes religiosos que são os responsáveis diretos pela disseminação da ideologia dominante. Em cima encontram-se os representantes do poder capitalista que exercem todo tipo de pressão sobre os debaixo. Tudo funciona de modo que o status quo em nada seja alterado.

Como afirmei, um papel decisivo na manutenção da desigualdade social é desempenhado por aqueles que se encontram no meio da pirâmide, os ideólogos que dizem representar o grupo maior dos evangélicos, mas que, descomprometidos com quaisquer projetos de transformação social, apenas servem aos interesses da elite. Mesmo que não reconheçam, tal casta é dominada pelos de cima, aqueles que desejam mais do que tudo conservar o status quo. É na conduta desses sujeitos que reside o perigo. Tais líderes falam em nome da maioria e às vezes nem conhecem a realidade da maioria.

Nesta altura é necessária uma observação a favor daqueles que vem com otimismo o papel transformador das igrejas. De fato, como eles argumentam, muitos evangélicos lograram conquistar uma ascensão social, subvertendo o lugar que a organização desigual da sociedade inicialmente reservou-lhes. A impressão que eu tenho, porém, é que esse fenômeno é circunscrito a casos individuais. Se nada alterar a tendência mais provável, tais casos serão cada vez mais raros, pois a perspectiva de ascensão econômica por meio da educação deverá ser redimensionada à luz da regressão que observamos no sistema educacional. Em linhas gerais, o projeto educacional promovido pelo atual governo tem contribuído para privar ainda mais o povo das oportunidades de ascensão que floresceriam num cenário hipotético de melhoria da qualidade do ensino regular. Como poderão as oportunidades oferecidas pelas igrejas não se frustrarem devido o saldo perverso do desmonte da educação?

Penso que uma revolução social capaz de corrigir as disparidades e as injustiças da sociedade brasileira só poderia partir debaixo, não do meio, menos ainda do topo da nossa pirâmide. É em sua base que deveriam surgir caminhos que nos permitissem atravessar os graves problemas sociais que historicamente atingem os brasileiros mais vulneráveis. Se esse movimento não surgir da base, a promessa do evangélico brasileiro como realizador de uma grande transformação social em benefício dos mais pobres estará fadada a morrer. Como as ações de pastores e líderes religiosos seriam essenciais para despertar a consciência das bases necessária a qualquer movimento realmente transformador, pelo que apontei aqui, não teríamos motivo para confiar numa tal revolução.

Com exceção de alguns pequenos grupos e de alguns movimentos circunscritos de evangélicos engajados na transformação social, as igrejas pouco tem contribuído para uma transformação radical da sociedade. Mesmo no caso de depositarmos nossas esperanças nessas iniciativas minoritárias, os problemas e as dificuldades que os evangélicos progressistas enfrentam para se organizarem sugerem que se por acaso essas iniciativas se multiplicarem, ainda assim seria necessário um longo tempo para que os primeiros frutos pudessem ser colhidos.