PEC das Drogas cria terreno fértil para comunidades terapêuticas religiosas

PEC das Drogas cria terreno fértil para comunidades terapêuticas religiosas

O Senado aprovou no último dia 16 de abril, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que criminaliza o uso, o porte e a posse de drogas. O texto agora segue para a Câmara dos Deputados e, ao que tudo indica, também deve ser aprovado por lá. A PEC foi idealizada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em resposta à votação pela descriminalização da maconha que entrou na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). A versão oficial é que Pacheco queria colocar limites ao que chama de interferência exagerada do Supremo. “Quem faz as leis somos nós”, afirmou o senador.

Sim, senador. É o Congresso quem faz leis como a criminalização das drogas e pela legalização do vape, o dispositivo eletrônico vendido como uma forma mais segura de fumar. No entanto, já se sabe que pode causar sérios danos à saúde pelo descontrole do uso, principalmente pelos mais jovens, como o risco precoce de doenças respiratórias, infarto e AVC (Acidente Vascular Cerebral). Coerência é uma palavra em falta no dicionário do Legislativo.

O que estava em votação no STF é a inconstitucionalidade de um dos artigos da lei 11.343/2006 que prevê que usuários e pessoas que portam drogas para uso pessoal deveriam cumprir penas alternativas. O problema começa na redação do texto legal. O segundo parágrafo do capítulo III da lei explica que: “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.

Como não há uma definição clara sobre quanto é porte, em geral é o agente policial quem dá o destino a quem foi flagrado com algum volume de droga. Resultado: as cadeias hoje estão lotadas de pessoas presas com quantidades irrisórias de drogas que cumprem pena por porte ou mesmo tráfico. E não sou eu quem diz isso, há pesquisas que demonstram o fato.

Vejamos: o caso que gerou essa discussão no STF é de um homem condenado por porte ao ser flagrado com três gramas de maconha. O pedido original era pela descriminalização de qualquer substância. Mas o plenário do Supremo acatou a sugestão do ministro Alexandre de Moraes em focar apenas na maconha. Diante do impasse sobre o volume que seria descriminalizado, o ministro Dias Toffoli pediu vistas e o julgamento foi adiado. Assim, Pacheco conseguiu cortar caminho e assumir as rédeas da discussão.

Há um método perverso oculto nessa briga por território legal entre Pacheco e Supremo. Relacionar a dependência química ao crime é mais que desviar a atenção do que deveria ser controlado de fato, que é o tráfico nas nossas fronteiras. É desviar o debate para longe das políticas públicas necessárias para controlar o problema. É eximir os governos da necessidade de atender pessoas que, afinal, deixaram de ser doentes para serem bandidos. Assim, os usuários de drogas passam a ser indivíduos que não merecem programas ou atenção.

Mesmo com a lei 11.343/2006 ainda em vigor – distinguindo dependentes químicos de traficantes – a postura policial nos fluxos de uso, conhecidos como cracolândias, sempre foi de violência e desumanização dos usuários. Como passará a ser com a criminalização de tudo? Eles terão coragem de buscar ajuda já que se tornaram criminosos e correrão o risco de serem presos? Os governos manterão os parcos programas de atenção à dependência química para os novos “bandidos” que merecem cadeia? Quem irá se dispor a atender essas pessoas?

O vácuo das políticas públicas cria um terreno fértil para as igrejas que assumem o papel de provedoras de assistência. A atuação junto aos encarcerados é um bom exemplo. Ao transformar automaticamente dependentes químicos em criminosos, restará apenas o acolhimento nas comunidades terapêuticas religiosas a esse grupo. Você que me lê talvez pergunte: e não é bom? Eu respondo: sim e não.

Sim. Antes missionários religiosos do que membros do PCC (Primeiro Comando da Capital). Nas comunidades terapêuticas religiosas é comum relacionar o consumo de drogas ao pecado. Assim, na busca pela salvação das almas, Deus se torna um tratamento eficaz. Aquele que perdeu o controle sobre si mesmo precisará de uma instância superior para conseguir reconstruir sua vida.

Não. Já tratei aqui em outras colunas que, apesar de haver muitas comunidades terapêuticas religiosas que são sérias e oferecem atendimento acolhedor a uma parcela da população que a sociedade sequer encara como seres humanos, essas entidades têm dificuldades de entender e aceitar alguns comportamentos. Elenco aqui os não cristãos e a comunidade LGBTQIA+. Mulheres que são mães e que estão nas ruas, e que abandonaram seu papel primordial de cuidadora da família e do lar, também são alvo dos julgamentos morais comuns nessas casas.

Agora com o selo de criminosos a ser conferido pelo Congresso Nacional as privações de atendimento público serão maiores. Ainda poderão recorrer às comunidades terapêuticas religiosas movidas pela solidariedade cristã. Mas, nessas entidades, apesar de haver algo de assistência social, o objetivo fundamental é a evangelização, a conversão e a aceitação de Jesus como salvador. E, como Pilatos, governantes poderão lavar suas mãos.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.