Perseguição religiosa reflete elitismo e racismo brasileiros

Eu ouvi meu pai, o pastor assembleiano José Freire de Alencar (1915-1982) contar essa história algumas vezes. Em 1940, morando em Messejana, bairro de Fortaleza, ele foi acordado de madrugada por um irmão da igreja em Aquiraz. Um obreiro tinha falecido, então, na mesma madrugada eles pegaram os cavalos e foram para o enterro. Hoje numa boa estrada os 37 quilômetros do trajeto podem ser percorridos de carro em menos de uma hora, mas na época em montaria seriam algumas horas.

Além do sofrimento da morte, do cansaço da viagem, meu pai e seu companheiro ainda tiveram um outro problema inusitado: o padre na porta do cemitério não queria permitir o enterro, pois, segundo ele, no “campo santo não se podia enterrar um herege”. Isso algumas décadas depois da Proclamação da República e de uma Constituição em que a Igreja Católica deixou de ser a religião oficial. Como consequência, três ritos de passagem fundamentais da vida — nascimento, casamento e morte — saíram do domínio exclusivo dessa igreja e se tornaram elementos da sociedade civil. O Brasil se tornara um Estado laico, mas no interior do Nordeste, um padre ainda era autoridade acima do poder público (o delegado da cidade, aliás, estava calado ao lado do padre).

Em um texto publicado em 1942, História das Assembleias de Deus no Ceará, o Pastor José Teixeira Rego (1898-1960) registra as diversas perseguições e prisões que os evangélicos sofreram naquele estado, algo comum na época no Brasil, e publica também cartas que enviou ao governador citando a Constituição e a liberdade religiosa. Nos jornais das Assembleias de Deus de início do seculo XX há muitos registros parecidos. Naqueles velhos tempos, missionários estrangeiros, pastores assembleianos e demais membros da igreja, ao serem perseguidos ou presos, precisavam mostrar para a polícia uma cópia da Constituição e reivindicar essa liberdade. Um século depois, nenhum padre ou qualquer instância do poder público prende ou impede alguma atividade evangélica. A Igreja Católica mudou muito, idem o poder público. E as igrejas também mudaram. Muito.

A perseguição aos evangélicos era uma realidade na periferia rural do Nordeste. Com ausência de políticas públicas e escolarização, a hegêmonia católica pré-Vaticano II podia perseguir um grupo religioso minoritário, o grupo pppp — pobre, preto, periférico e pentecostal. Se até as igrejas de herança americana e europeia, formadas por uma elite branca, rica e escolarizada eram perseguidas (por isso elas se juntaram a Maçonaria, dentre outras razões), as igrejas pppp, como as Assembleias de Deus, eram mais ainda.

Em 1940, o Brasil tinha pouco mais de 40 milhões de habitantes, 95% eram católicos, apenas 2,61% eram evangélicos. Naquele momento as Assembleias de Deus tinham, segundo estimativas, 50 mil membros. Ser assembleiano era um ato “heroico”, pois, seus membros eram alvo de escárnio e deboche público. E não apenas nas primeiras décadas do século XX. Na minha infância, durante a década de 70, éramos insultados na rua, chamados de “bodes”; e as crianças corriam atrás de nós repetindo um slogan infame: ”crente do cu quente/ Lava o cu com água quente”. Nessa época, em Messejana muitas vezes, no horário do culto, jogavam pedras no telhado do templo. Diversas vezes ao ano, meu pai tinha que consertar o telhado. De forma jocosa alguns diziam para consertar o telhado somente se chovesse, pois como no Ceará não chovia, então, economizaríamos o dinheiro das telhas.

Mas, como já disse, muito coisa mudou. E a mim interessa as mudanças internas dessa igreja. Agora ela também é rica, tem membresia de classe alta, é percentualmente importante. Mesmo que a maioria de seus templos e membresia ainda sejam majoritariamente periféricos, ela também tem templos-shoppings, catedrais mimetizando o poder religioso católico.

Mudou tudo? Nem tanto. Espaços religiosos de pretos, pobres e periféricos continuam sendo apedrejados, invadidos e fechados por inimigos, mas esses espaços não são mais as igrejas evangélicas. Agora não são mais os padres os perseguidores, nem os templos assembleianos os perseguidos. Qual templo assembleiano foi invadido, qual pastor assembleiano foi, sob a mira de um revólver, obrigado a rasgar sua Bíblia, qual celebração evangélica foi vandalizada, qual grupo evangélico está sendo atacado?

Nada mais Brasil: o racismo estrutural e religioso continua igual. Os cultos afros pobres, pretos e periféricos estão na mira da perseguição, pois, ninguém se atreve a agredir um grupo esotérico de classe média, muito menos uma catedral assembleiana, onde o presidente, ministros e políticos “terrivelmente evangélicos” se reúnem. No Brasil, perseguição religiosa, como o racismo, tem CEP.

Em tempo: no final da tarde, com fome, sede e cansados no calor cearense, o padre permitiu o enterro, mas, meu pai e outros assembleianos tiveram que cavar o sepulcro, pois, os coveiros se recusaram. E o defunto numa rede, morto há mais de 24 horas, já fedia. Meu pai recordava que aquele foi um dos dias mais cansativos de sua vida, pois, além da fome e sede, ele e seus irmãos enfrentaram muita humilhação. O padre proclamava: “Nesse campo santo não se enterra um herege, isso é uma profanação”, meu pai tentou falar da Constituição onde os cemitérios não eram mais propriedade da Igreja Católica, mas o padre retrucou, “mas esse cemitério é nosso!”. Então, meu pai respondeu: “então aqui é sua casa?”. O povo riu, o padre não gostou, partiu para briga e, se meu pai não tivesse se afastado rapidamente teria levado um tapa do padre. A metáfora é obvia: religiosos enganosamente fascinados por um poder hegemônico brigam por um “campo santo” que não é santo, contra um “herege” que não é herege, e contra uma “profanação” que não existe. E a situação fede. Fede muito.