Perseguidos ontem, perseguidores hoje?

Perseguidos ontem, perseguidores hoje?

Por Gedeon Alencar

No velho chavão de que não somos um país sério, ou mais cinicamente, no Brasil, lei existe para ser quebrada, afinal Sérgio Buarque de Holanda, no seu clássico Raízes do Brasil, na década de 30, dizia que somos o país do “rito frouxo”. Então, segundo ele, as “seitas nórdicas” (no caso as expressões protestantes no início do século XX; ele que estudou na Alemanha e conhecia bem o que Weber denominou de “ascetismo intramundano”) não iriam prosperar no Brasil. Um século depois vimos que ele se enganou, a expansão dos grupos evangélicos no Brasil nos mostram que os protestantismos se “abrasileiraram”. E ainda tem cientista social que diz — por autoengano ou preconceito — que a única religião brasileira é a umbanda!

No país em que horário existe para não ser cumprido, regras para serem quebradas e leis ignoradas, como e por que o “protestantismo tupiniquim” (Alencar, 2018) poderia diferir do restante dos pais — e, no meu Ceará, até o sol já foi vaiado! Mas temos alguns grupos “debocháveis”; outros não.  Por exemplo: expressões religiosas de pessoas pobres e diversidades sexuais. O ex-presidente debochou dos quilombolas, um deputado zombou dos transgéneros, e alguns grupos na TV concretizam escárnio dos orixás — e nada acontece? Mas um ex-secretário da cultura efetuou algo não ofensivo, apenas mimético ao nazismo, sendo expulso no mesmo dia. Talvez se tivesse feito contra quilombolas, gays, cultos afro e periferia, hoje tinha um mandato para continuar sua saga…

Se por acaso — e bota acaso nisso… — houvesse um programa de televisão produzido por praticantes de religiões de matriz afro em que se debochasse da Santa Ceia dos evangélicos ou da Eucaristia católica, esse programa só faria isso uma vez. Imediatamente sairia do ar, teria sua concessão cassada, etc.

Não foram os evangélicos que inventaram essas práticas. Eles apenas dão continuidade ao que a Igreja Católica fez — e ainda faz — em alguns lugares, ou ao que o próprio Estado fazia no passado ao perseguir os praticantes de religiões afro-brasileiras e também aos evangélicos.

Mas precisamos voltar um pouco na história, meu pai, pastor assembleiano, na década de 40, no interior do Ceará, levou um tabefe de um padre por sua petulância de levar um “herege” para enterrar no “campo santo”, isso algumas décadas depois da Proclamação de república onde nascimento, casamento e cemitérios tinham legitimação exclusiva da Igreja Católica. Algumas décadas depois o país e a Igreja Católica mudaram muito. Idem, os evangélicos. Agora esses são quantitativamente visíveis, numericamente contabilizados, e, mesmo ainda majoritariamente ainda nas classes mais baixas, estão repetindo o que sempre normal no país ou no mundo: criminalizar o diferente!

Os registros oficiais das intolerâncias religiosas no Brasil indicam que são as expressões afro as mais perseguidas, e a complexidade do problema é tanta que grupos evangélicos se alternam como também vitimas (segundo lugar) e produtores da intolerância (primeiro lugar). A intolerância fraticida dos grupos religiosos é resultados de disputas internas: afinal não foram os cultos afro ou denominações evangélicas quem boicotaram as CEBs e a teologia da libertação, mas acao do Vaticano. E seguidores de culto afro repetem as “guerras de orixás” (Maggie, 2001) entre si fazendo que as cosmologias sempre fizeram.

No campo evangélico sempre houve um “processo de satanização” das expressões culturais, por isso, mesmo, festas juninas, carnaval, futebol, moda, cinema, lazer — tudo era pecado (isso não somente no mundo pentecostal, mas no protestantismo em geral). Pecado, pois, se eu não tenho, não posso ou não é algo de meu grupo, então é mau/l, satânico. Mas se esse produto é meu ou do meu grupo, então é bom, correto, sadio. Divino. Vejam que décadas atrás “politica era coisa do mundo”, portanto, também pecado. Hoje politica deixou de ser pecado, mas continua sendo pecado a política do outro…

​No início da era cristã, o Coliseu romano era espaço de espetáculo para leões devorarem os cristãos. Pouco tempo depois o cristianismo se tornou a religião do Estado — e mudaram o cardápio dos leões.  No Brasil, então, continua sendo válido debochar de pobres, gays, afro e — também dos pentecostais. Na peca do Jean Genet, “As criadas” uma madame burguesa oprime sua empregada, e, essa reproduz a opressão na outra empregada e ela reproduz… e, assim, a distopia se pereniza. Alguma novidade que, parafraseando Paulo Freire, o sonho do perseguido é se tornar perseguidor?

Referências:

ALENCAR, Gedeon — Protestantismo Tupiniquim. Hipóteses sobre a (não) contribuição evangélica à cultura brasileira, São Paulo, Editora Recriar, 2018.

HOLANDA, Sergio Buarque — Raízes do Brasil, São Paulo.

MAGGIE, Yvonne – Guerra de Orixá. Um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Gedeon Alencar é doutor em ciências da religião-PUC-SP, é membro do Grupo de Estudos do Protestantismo e Pentecostalismo- GEPP-PUC-SP, da Comissão de Historia da Igreja na América Latina e Caribe -CEHILA e da Rede de Latinoamericana de Estudos Pentecostais-RELEP, autor dos livros Protestantismo Tupiniquim. Hipótese sobre a (não) contribuição evangélica à cultura brasileira, Matriz Pentecostal Brasileira. Assembleias de Deus 1911-2011, Ecumenismos & Pentecostalismos. A relação entre o pescoço e a guilhotina e Filemom. Essa carta deveria ter sido escrita? Casado com Diana Freire e ambos se congregam na Igreja Betesda-SP.  Acompanhe-o pelo Instagram.