Política sem religião existe?

O Estado laico precisa garantir a igualdade religiosa e a igualdade entre as pessoas, e não pode e não deve impor nenhuma visão religiosa. Mas isso não significa proibir expressões religiosas no espaço público.

Política sem religião existe?
Crédito: O Globo

Que o Estado brasileiro é laico, todos nós sabemos, mas afinal, o que é de fato a laicidade do Estado? Existe como separar religião e política?

Muito se diz sobre os evangélicos na política brasileira. Há uma certa indignação quase que generalizada por parte de pessoas não evangélicas acerca da presença de evangélicos em cargos políticos. Porém, algo que pouco se fala é que em nossa história a religião sempre esteve na política. Durante séculos, a Igreja Católica participou da política e colaborou na construção do espaço público. Todavia, também se beneficiou dessa colaboração para desenvolver, na sociedade civil, laços estreitos entre catolicismo e patriotismo, construindo assim, a ideia de uma nação católica.

Nas últimas décadas houve um crescimento relevante da presença de atores evangélicos em cargos políticos, e isso vêm incomodando muitas pessoas, sendo tema de diversas pesquisas entre acadêmicos, mas também motivo de revolta por parte de quem não é evangélico. A questão que sempre vêm à tona é: mas o Estado brasileiro não é laico?

A laicidade do Estado é algo muito complexo, existe na normatividade mas nem sempre existe na prática pelo fato de que envolve questões maiores, como por exemplo: como é possível impedir que um servidor público leve para o seu dia a dia de trabalho a sua bagagem religiosa? Não existe a possibilidade de separar o indivíduo de sua religião, de suas crenças, de seus valores e visões de mundo. Se partirmos da definição clássica de religião fornecida por antropólogos, a religião é um conjunto de sistemas culturais e crenças, e dessa forma é praticamente impossível separar a religião das outras esferas sociais.

Nesse sentido, o problema não é um indivíduo religioso estar no espaço público, mas sim o fato de este indivíduo utilizar o cargo público para legislar apenas para o seu grupo religioso, e não para o bem público como um todo. É essa a questão que deve ser pensada quando se discute a laicidade do Estado.

Muitas pessoas acreditam que um Estado laico implica em um espaço público onde não haja expressão de nenhuma religião. Porém, de acordo com a definição mencionada, um Estado laico não exige um espaço em que a religião não possa existir publicamente, mas sim assegura um espaço em que todas as religiões possam existir publicamente, o que infelizmente não é uma realidade hoje.

O Estado laico precisa garantir a igualdade religiosa e a igualdade entre as pessoas, e não pode e não deve impor nenhuma visão religiosa. Mas isso não significa que não deva existir religião no espaço público, ao contrário, todas as religiões devem ter liberdade e direito de serem exercidas de maneira livre, desde que os dogmas religiosos não interfiram nas normas jurídicas: ou seja, a norma jurídica não pode estar abaixo da norma religiosa.

Nesse sentido, pensar em uma oposição entre a religião e o espaço público é limitante para compreender, por exemplo, o fluxo de atores pertencente aos segmentos evangélicos em arenas políticas que atuam defendendo as suas concepções de moralidade na produção de legislações e de políticas públicas.

A presença de atores religiosos na política sempre existiu e isso inclusive faz parte de um Estado democrático, porém, os desafios atuais devem estar concentrados em pensar: o que é de fato o interesse público? O que fere a laicidade e o que não fere? Como a religião pode ser um caminho para o fortalecimento da democracia e para o bem comum?

É necessário tratar estes temas com seriedade e fugir das paixões e dogmas que envolvem a defesa de manifestações religiosas dentro da política.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Manuela Löwenthalé Doutoranda em Ciências Sociais pela UNIFESP, pesquisa temas vinculados à Religião e Política no Brasil. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (2012), onde também obteve o título de mestre. É pesquisadora  do projeto Temático "Religião, Direito e Secularismo: A reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo", financiado pela FAPESP.  Atua também como Professora de Sociologia na Rede Estadual Paulista.