Por uma taxonomia sobre os evangélicos

Por uma taxonomia sobre os evangélicos
Foto: Chiquito Chaves / Agência O Globo

Sob a designação de evangélicos, encontramos uma multifacetada realidade. São diferentes formas de perceber o divino, de se relacionar com ele; são diferentes modos de cultuá-lo (desde Marburg em 1529, a eucaristia foi sedimentada sob diferentes perspectivas); são diferentes maneiras de organização (congregacional, episcopal, entre outros); são diferentes designações para as placas dos templos, que vão desde as tradicionais Igrejas Luterana, Anglicana, Metodista, Batista, Presbiteriana, às pentecostais como os diferentes ramos da Assembleia de Deus, neopentecostais como a Igreja Universal do Reino de Deus e as “criativas”, como a Igreja do Cuspe de Jesus.

São diferentes classes sociais e níveis de formação. Há ricos e pobres; analfabetos e doutores; assim como há diferentes etnias e gêneros. Neste universo que é a Igreja evangélica no Brasil, tem crente que cultua de bermuda e outro de burca. Tem pastor que usa sunga na praia, na piscina, e pastor que sempre esteve com a calça de tergal, mesmo quando acompanhando o banho de mar da juventude da igreja.

Diante de tanta diversidade e discrepância seria possível uma classificação? Algumas têm sido sugeridas, como a já clássica distinção lastreada do desenvolvimento histórico do protestantismo no Brasil (Igrejas Históricas, Igrejas Pentecostais, Igrejas neopentecostais ou de pentecostalismo autônomo), ou ainda a dicotômica distinção entre progressistas x conservadores. Há que se lembrar a classificação calcada nos compêndios teológicos, que distingue entre liberais, conservadores e fundamentalistas. Conquanto reconheça o valor e pertinência destas abordagens, gostaria de sugerir uma outra que parte do fundamentalismo como contraponto. Assim sendo, a taxonomia, que ora proponho, tem a ver com a abertura (ou não) para o diálogo.

O primeiro grupo é o que se mostra fechado para o diálogo e que funciona como balizador para esta taxonomia. Falo dos fundamentalistas. Não há troca possível como fruto do diálogo, pois a postura dogmática do fundamentalista não permite sequer ouvir novas concepções. A instrumentalização da ciência na seleção do que interessa visando sublinhar certos dogmas, evidencia não só a ausência de diálogo, como também a apropriação do conteúdo exposto. A mente do fundamentalista trabalha a partir de pequenas molduras. Nelas ele enquadra a vida, a ciência, a fé. O problema no campo da fé, por exemplo, é que Jesus não cabe no molde fundamentalista, como bem lembra Harry Emerson Fosdick.

Os conservadores é o que chamo de segundo grupo. Conquanto, segundo Fosdick, “todo fundamentalista seja conservador”, “nem todo conservador é fundamentalista”. A marca deste grupo, na liderança, por exemplo, é que possuem genuíno coração pastoral. O conservador é alguém aberto para o diálogo. Conquanto não se possa esperar grandes concessões em seus posicionamentos, especialmente quando se toca nas questões envoltas ou afins à sexualidade, os conservadores, via de regra, estão sensíveis aos grandes temas sociais. Falo da fome, da violência, do feminicídio, da precarização do ensino nas escolas públicas, entre outros. Neste sentido, cabe aos espectros políticos de centro-esquerda estabelecer a distinção entre conservadores e fundamentalistas, e buscar a aproximação com o primeiro grupo, em temas mais amplos.

Já os moderados se mostram aptos para o diálogo, com grande possibilidade de revisão de suas posições, inclusive em temáticas mais sensíveis. Mesmo possuindo forte ligação eclesiástica, quando não denominacional, não se deixam levar pelas cartilhas religiosas em sua conotação dogmática. Normalmente composto pelos mais intelectualizados e antenados, são de fácil acesso. Por serem antenados, possuem uma agenda atualizada e até mesmo de vanguarda. Apreciam o debate; cultivam o diálogo. São leitores.

Os liberais estão na vanguarda. Os temas que os seduzem ainda não chegaram ao debate social. Via de regra, possuem formação sólida, profunda. São proponentes do diálogo, inaugurando temas e abordagens de modo pioneiro. Sua relação eclesiástica costuma ser mais distendida; todavia isso se deve mais a incompreensão da comunidade de fé do que da vontade deles em participar. Estão no extremo oposto do fundamentalismo no tocante a percepção sobre a Bíblia e sua hermenêutica. Entretanto, ao contrário do fundamentalismo, onde a formatação impede a diversidade fazendo com que só haja líderes alinhados ao espectro político da extrema-direita e direita, no liberalismo teológico o diapasão do espectro político é maior, tendo espaço para diferentes correntes políticas entre seus componentes. Para os teólogos liberais, espécie rara no Brasil, não é o ideário político que os define. Por esta razão, atribuir sinonimamente o pensamento da teologia liberal ao progressismo político só atesta a questionável formação daqueles que o fazem.

A proposição de uma taxonomia visa evitar que diferentes linhas e pensamentos sejam englobadas na hora do trato de certos posicionamentos. Ora, não é produtivo nem salutar, confundir conservadores com fundamentalistas, nem liberalismo teológico com progressismo. O trato diferenciado permite que pontes sejam construídas, com grupos que se abrem ao diálogo e que o inexorável tempo não seja perdido com fundamentalistas.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas.