Globo erra ao abordar comunidades terapêuticas em reportagem
A reportagem sobre as comunidades terapêuticas exibidas pelo programa Fantástico da Rede Globo no último domingo é um caso exemplar de mal jornalismo. O primeiro indício disso deriva do evidente cunho político da reportagem, algo que explica a maior atenção dada a uma comunidade específica, a Fundação Dr. Jesus, além da ênfase no caso das verbas repassadas a essa entidade pelo Governo do Estado da Bahia durante a gestão do Partido dos Trabalhadores. No atual cenário eleitoral, as denúncias apresentadas pela reportagem e a forma depreciativa como o tema das comunidades terapêuticas foi tratado beneficia justamente o grupo que é dono da emissora afiliada à Rede Globo na Bahia, grupo liderado por Antônio Carlos Magalhães Neto que se opõe ao PT. O lugar que a reportagem concede à figura do Pastor Sargento Isidório, que por sinal é deputado federal pelo Avante, também é outro indício do viés político que se aponta. Quem já o conhece na política, sabe que ele é um personagem caricato, cuja conduta pode ser criticada em muitos pontos. A reportagem do Fantástico menciona brevemente que ele é um deputado federal para em seguida explorar a imagem caricata de Isidório segurando um facão. Além dessa cena, outras tomadas parecem indicar um esforço deliberado de depreciação do trabalho realizado pelas comunidades terapêuticas, como ocorre com a reiteração de locais marcados pela sujeira e pela precariedade.
Como se esse viés político não fosse o bastante, a reportagem do programa Fantástico também foi infeliz ao abordar o tema das comunidades terapêuticas. A Fundação Doutor Jesus, com todas as dificuldades e com todos os problemas que temos conhecimento, atende hoje cerca de 3000 mil pessoas, suprindo uma demanda que provavelmente o sistema público de saúde não seria capaz de suprir. Concordo que devemos criticar e condenar com veemência a prática apontada pela reportagem de submeter os residentes a uma dieta exclusiva de arroz como castigo pelo não cumprimento de tarefas como decorar o versículo da bíblia. Esse tipo de conduta deve ser averiguada pelo Ministério Público, para que alguma medida seja providenciada. Quanto às outras acusações feitas pela reportagem, por administrar uma instituição voltada para o tratamento de dependentes químicos situada bem próximo da Fundação Doutor Jesus, acabei conhecendo algumas pessoas que passaram por essa instituição e nunca tomei conhecimento de relatos de violência física e tortura.
Como abordar o tema das comunidades terapêuticas sem reconhecer a importância de muitas delas para o tratamento de dependentes químicos, a exemplo do caso de Walter Casa Grande Júnior, comentarista esportivo da Rede Globo? E como negligenciar também o fato de que muitas dessas comunidades realizam trabalhos bem sucedidos em parceira com o Caps, a exemplo do que sucede em Serrinha, cidade da Bahia onde pastoreio. Todo mundo que deseja se internar em nossa comunidade é orientado a passar no Caps. Muitas vezes o próprio Caps indica os internos para a gente. Esse tipo de trabalho conjunto evidencia para mim que o papel principal que a comunidade terapêutica deve assumir e o de fornecer um apoio ao Estado para o enfrentamento do problema do vício, que afinal é uma questão de saúde pública. Aliás, sobre a relação entre as comunidades e o Estado, não podemos perder de vista que os investimentos públicos nessas entidades é algo recente e que elas surgiram justamente devido a ausência de políticas públicas direcionadas para o problema do abuso de drogas. Desde 1975, época em que foi fundada a comunidade católica Desafio Jovem, uma das pioneiras no Brasil, até recentemente, o direcionamento de verbas públicas para as comunidades não existia, mas isso não impediu que essas entidades continuassem a funcionar, realizando um trabalho social de extrema importância. Diante desse histórico das comunidades, a ideia veiculada pela reportagem do Fantástico, de que a religião e a ciência seriam antagônicas e não poderiam ser integradas a favor de um tratamento mais efetivo, mostra-se inconsistente.
O trabalho desempenhado pelas comunidades terapêuticas pode ser objeto de questionamentos e críticas. Ou melhor, precisa ser, afinal, a grande conquista da Reforma Protestante passou pelo reconhecimento de que o reformado é na verdade sempre um reformando, alguém em constante aprendizado, que por isso mesmo têm a capacidade de, ao longo de sua jornada, corrigir a rota da própria vida. As críticas não são um problema. O problema existe quando interesses políticos querem se fazer passar por crítica. E no caso da reportagem veiculada pela Rede Globo, parece evidente o predomínio do viés político em detrimento do que poderia ser a crítica que se espera de um bom jornalismo.