Relação entre indígenas e os missionários evangélicos

Relação entre indígenas e os missionários evangélicos

Cada vez mais diversas aldeias indígenas ganham adeptos do cristianismo, e isso causa uma enorme confusão entre a população.

Assim como qualquer indivíduo, pessoas de origem indígena possuem total liberdade de escolherem a sua fé. Porém, quando se trata de cultura, identidade, tradição e ancestralidade, nada é simples. É necessário uma reflexão acerca de algumas questões que irei pontuar neste artigo.

Historicamente, a catequização de povos indígenas pela igreja católica legitimou diversas violências e políticas de domínio. Da Patagônia aos desertos da América do Norte, passando pela Mata Atlântica, pelo Altiplano e pela Amazônia, foram quase cinco séculos de dominação e apagamento da história.

Porém, com a fundação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), há 50 anos, essa interferência católica foi bloqueada, e então foi a vez dos missionários evangélicos que passaram a vir dos Estados Unidos para o Brasil evangelizar. Até hoje, o número de indígenas evangélicos aumenta a cada ano. Atualmente, o Brasil vive o que alguns especialistas chamam de “terceira onda missionária”.

O censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que o percentual de indígenas evangélicos saltou de 14% para 25% entre 1991 e 2010, número que aumentou mais ainda a partir da nomeação do ex-missionário Ricardo Lopes Dias (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51319113) para coordenador da Funai, órgão responsável pela proteção dos direitos dos povos indígenas O nome indicado pelo governo Bolsonaro repercutiu negativamente, recebendo diversas críticas de especialistas, antropólogos e estudiosos, uma vez que claramente representava uma possível flexibilização da política de isolamento dos povos indígenas e de proteção de seus territórios. E foi exatamente assim que os fatos se sucederam, o garimpo ilegal avançou indiscriminadamente em territórios indígenas, assim como a entrada de missionários evangélicos em aldeias, algo que até então era monitorado e fiscalizado pela Funai.

A fiscalização ocorria principalmente para proteger os indígenas de contaminação por doenças. Povos isolados possuem grande vulnerabilidade de doenças, e segundo pesquisas, o contato com missionários é um dos maiores motivos dessa contaminação.

Segundo o documento “Cercos e Resistências: Povos Indígenas Isolados no Brasil”, produzido pelo Instituto Socioambiental (Isa) (https://acervo.socioambiental.org/acervo/publicacoes-isa/cercos-e-resistencias-povos-indigenas-isolados-na-amazonia-brasileira), após o contato, alguns povos perderam 90% de sua população. É o caso dos Nambikwara. Antes do contato, eram 10 mil indivíduos. Nove mil morreram em decorrência de epidemias de sarampo, gripe, coqueluche e gonorreia.

Além da contaminação por doenças, estudos apontam que o não cumprimento de medidas de proteção de isolamento de povos indígenas e seus territórios também faz com aumente a vulnerabilidade à invasão de madeireiros, garimpeiros e fazendeiros nestes territórios. Fato que ocorreu muito durante o governo Bolsonaro, principalmente com a mediação da ex-ministra da pasta Mulher, Família e Direitos Humanos. Ambos afirmaram ser a favor da revisão da política de isolamento de indígenas.

Damares, que é evangélica, foi uma das figuras mais atuantes durante o governo Bolsonaro na questão indígena, defendo políticas contrárias ao isolamento, facilitando assim o contato de missionários evangélicos com esses povos, inclusive durante a pandemia de Covi-19. De acordo com levantamento feito pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), foram mais de 34.816 casos de indígenas contaminados pelo vírus, 837 mortos e 158 povos afetados.

Além da contaminação por doenças, há também a interferência cultural, e consequentemente no modo de produção de alimentos e rituais, afetando também a subsistência desses povos e a perpetuação de sua cultura. Muitas festas e tradições passam a ser alvo de missionários, como por exemplo o consumo de bebidas fermentadas feitas com mandioca (como o caxiri) ou milho, interferindo diretamente na continuidade de tradições milenares.

Tal interferência pode transformar toda a dinâmica da vida indígena e a relação dessas tradições com a terra e a produção de alimentos, por exemplo. Ao modificar sua relação om a terra, a soberania alimentar também é afetada, criando assim uma dependência de fornecimento de alimentos externos.

Para muito além de questões morais, divergência religiosa ou liberdade de crença, o contato de povos indígenas com instituições externas está relacionado a toda uma história muito longa de dominação e apagamento de tradições de povos já tão prejudicados historicamente.

Medidas de proteção dessas populações e seus territórios se faz cada vez mais urgente, uma vez que durante o governo Bolsonaro esses povos foram tão atacados e seus direitos violados.

Deixemos os povos indígenas livres em seus territórios para praticarem suas crenças, suas tradições, e se converterem ao cristianismo se assim quiserem, porém, de forma livre e autônoma, bem diferente do que ocorreu ao longo da história até hoje.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Manuela Löwenthal é Doutoranda em Ciências Sociais pela UNIFESP, pesquisa temas vinculados à Religião e Política no Brasil. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (2012), onde também obteve o título de mestre. É pesquisadora  do projeto Temático "Religião, Direito e Secularismo: A reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo", financiado pela FAPESP.  Atua também como Professora de Sociologia na Rede Estadual Paulista.