O sagrado e o poético: uma conversa com a filósofa e poeta Quesia Olanda

O sagrado e o poético: uma conversa com a filósofa e poeta Quesia Olanda

Para os apaixonados pela escrita e pela leitura poética, o Dia Mundial da Poesia,
comemorado em 21 de março, assume uma aura quase sagrada. É um momento digno de rituais reverentes, como pegar a antologia do poeta favorito da estante, transformar versos em orações e agradecer aos céus por rimas inspiradoras.

No Brasil, há inúmeros exemplos históricos que evidenciam a estreita relação entre
poesia e o sagrado. A herança afro-católica do país nos proporciona momentos
luminosos em que essa conexão é produtiva, mas também revela desafios. O déficit de contribuição protestante para a arte poética nacional, observado por Gilberto Freyre na Conferência do Nordeste em 1962, continua sendo uma questão a ser enfrentada.

Em torno destas questões, tendo como ocasião a celebração da poesia, bati um papo com Quesia Olanda, cristã protestante, mestra (UERJ) e doutoranda em filosofia (UFRJ) e autora do livro “colcha de retalhos ou quase-poesias”.

Arthur Martins: “O homem tem experimentado muito. Nomeado a muitos celestes,
desde que somos um diálogo e podemos ouvir uns aos outros.” Estes são versos do
poeta alemão Hölderlin que articula bem as dimensões do sagrado e da alteridade.
Como você enxerga a potência da escrita poética em nomear experiências do
sagrado?

Quesia Olanda: Acho que o poeta consegue expressar em palavras os sentidos, e o
sagrado é totalmente vinculado com a sensibilidade. Claro que a poesia não dá conta de tamanha transcendência, mas tamanha sua potência que gotas celestiais podem ser derramadas através das palavras. João disse que Jesus é o verbo, a palavra. Ele (a palavra) se fez carne, em ato, entrou em cena. A própria vida se doou e dela outras nasceram. A palavra, portanto, tem a ver com dom. Quando escrevemos doamos algo, alguma coisa transborda. Cristo transbordou! E a Clarice Lispector diz algo que acho lindo sobre o ato de escrever, para ela, a escrita além de salvação, é doação. Tudo isso é poesia!

A.M.: Em sua dissertação de mestrado, a partir da escrita de Clarice Lispector e de
Friedrich Nietzsche, você cunhou o conceito de “otoconhecimento”, para se referir ao aspecto intrínseco da alteridade na escrita. No caso da poesia, como você acha que a poesia e a escrita em geral podem nos ajudar a compreender nossas relações com o mundo e com os outros?

Q.O.: Tem um um verso que gosto muito do poeta brasileiro Alberto Pucheu que diz o seguinte: “quer aprender a alteridade, vá ler poesia”. A poesia sempre afirmou o outro, sempre convocou o outro, sempre articulou mundos. Versos que nos tiram de uma vida autocentrada, uma vida que quer mais se “autoconhecer” e nos convocam a um “otoconhecimento”, como usei na dissertação. Oto quer dizer ouvido. Resumidamente, é um conhecimento que não se concentra no sujeito fixo, moderno/autocentrado, mas é um tornar-se, um conhecimento que está sempre acontecendo e que se atrela a uma escuta da vida. Acho que a poesia e a escrita nos ensinam a ouvir: o outro, o mundo, a nós mesmos. E a escuta é algo que está em falta em nosso tempo; todo mundo quer falar, quer ter opinião sobre tudo, mas ninguém quer ouvir. E a escrita poética, a meu ver, me desloca para essa escuta atenta.

A.M.: Você publicou em 2023 o livro de poemas “colcha de retalhos” pela editora portuguesa Ases da Literatura. Sendo cristã protestante, você acredita que essa matriz espiritual-religiosa esteve presente em seus poemas? E para novos escritores, como pensa que pode ser a relação entre a fé e a escrita poética?

Q.O.: Sim, acredito, com toda certeza! A maioria dos meus poemas nasceram do ordinário, de algum simples acontecimento na rotina que de algum modo me tocou e inspirou, impulsionando minha escrita. É como se eu pudesse experimentar o extraordinário no trivial, o transcendente no aqui e agora. E isso está totalmente atrelado a minha fé. Lembro da Emily Dickinson, quando escreveu que “Deus está no meu quintal”. É isso! Ele está! Tem um livro que gosto muito da Tish Warren, “Liturgia do ordinário”, ela fala justamente da experiência religiosa no dia a dia e de como podemos encontrar Deus e glorificá-lo no trivial. Tentei costurar minha colcha justamente com essas linhas. Rastros do “Deus-poesia” – como gosto de chamá-lo – estão em cada página, nas nuances, nas entrelinhas. O cantor Marcos Almeida faz música brasileira tecida na Esperança, né? E é essa mesma Esperança que busca tecer meus versos. Acredito que minha obra para ser confessional, não precisa necessariamente estar nos moldes “evangeliquês”. Somos seres plurais, nossa brasilidade é rica e Deus gosta dessa diversidade. Por que, então, me enquadrar? Fomos chamados para a liberdade e isso pode se mostrar também na escrita. A fé está totalmente ligada com a escrita poética. É como uma ponte, que não separa, mas que atravessa.

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Arthur Martins é graduado em Filosofia (UCB) e mestrando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), onde desenvolve pesquisa sobre cultura, música popular e religião. É compositor, músico e cantor do Rio.