Transformações da teologia evangélica por causa do bolsonarismo

Bolsonaro voltou, nos últimos dias, a apelar para uma defesa das maiorias e para um discurso de gênero simplista e preconceituoso. Tanto no dia 14 de julho em Imperatriz, cidade do Maranhão com grande presença evangélica, quanto em 15 de julho em Juiz de Fora, na 43ª Convenção Estadual das Assembleias de Deus, Bolsonaro explorou o discurso de que as leis devem favorecer uma maioria e as minorias devem se submeter. Além disso, ele falou sobre o seu compromisso de, em harmonia com a vontade dos evangélicos, submeter toda a população LGBTQIA+ à normatividade heterossexual e intolerante a qualquer diversidade de gênero. Isso é mais do que resguardar os direitos de grupos religiosos de manterem sua moral sexual estrita: é a deslegitimação de todos os que não seguirem o estereótipo evangélico. Urge explicar de onde procede o sucesso de tais ideias junto a uma parcela significativa de evangélicos, recorrendo às origens do movimento evangélico no Brasil.

Origens dos evangélicos do Brasil: teologia e dependência

O movimento evangélico brasileiro é um herdeiro da Reforma Protestante, cujas mudanças de acento são advindas das transformações da teologia protestante nos séculos XVII, XVIII e XIX. As mudanças foram proporcionadas pelas influências puritanas, pietistas e dos avivamentos nos Estados Unidos, que engendraram o movimento que redundou na chegada de missionários batistas, presbiterianos e metodistas ao Brasil.

A identidade da teologia evangélica brasileira é atribuída fortemente à sua soteriologia e à centralidade de Cristo na salvação. O pecado humano, incorrigível, pode ser perdoado por Deus desde que cada indivíduo recorra a Jesus, o único e suficiente Salvador. Uma vez salvo, o crente participa da igreja local, onde procura viver com santidade de vida, sendo um bom representante daquilo que Max Weber chamou de ascese no mundo. Distante dos vícios, do pecado recorrente e da vida sem sentido, o crente dá testemunho e vive para alcançar outros para que eles sejam salvos.

O foco do cristão evangélico, sendo posto na sua missão evangelizadora, desconectou tal crente da tentativa de obtenção de hegemonia política. Os evangélicos brasileiros, por isso, se envolveram apenas timidamente com a Proclamação da República, com o Integralismo, com a Ditadura Militar. Porém, os valores morais estritos dos evangélicos se orientaram para a sexualidade e a rejeição aos vícios, como fumar ou beber.

Não houve, exceto pontualmente, uma análise mais profunda por parte dos evangélicos brasileiros dos graves crimes sociais, como a escravidão, a desigualdade de renda e a pobreza. A falta de renda, de moradia, a alimentação deficiente não eram compreendidas como resultados de uma conjuntura ofensiva a Deus, mas como aspectos conjunturais acidentais que podiam ser superados com o engajamento no trabalho e com a bênção de Deus.

O início de uma teologia política antiesquerdista: a influência da teologia norte-americana na Guerra Fria

Os fortes vínculos dos evangélicos brasileiros com os norte-americanos se explicam pelas origens missionárias do protestantismo no Brasil. As denominações surgidas no século XIX, como a Igreja Batista, a Igreja Presbiteriana e a Igreja Metodista; as denominações surgidas no início do século XX, como Assembleia de Deus e Congregação Cristã do Brasil; e as denominações que surgiram em meados do século XX, como a Igreja Quadrangular e a Igreja Cristã Nova Vida, sofriam uma forte influência dos evangélicos tradicionais norte-americanos.

O final da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria influenciou os cristãos norte-americanos a inserirem em suas teologias a rejeição política do comunismo. No bojo de tal denúncia estava a acusação de ateísmo contra o regime da União Soviética e Cuba, além de ser produzida uma reflexão a respeito do valor religioso da propriedade privada; da liberdade religiosa, econômica e política; e dos aspectos espirituais que explicavam a origem do comunismo, atribuindo-lhe até mesmo um caráter satânico. O vínculo dos evangélicos brasileiros com os norte-americanos viabilizou a difusão dessas ideias, e a crença da incompatibilidade entre o comunismo e o cristianismo, com a consideração acrítica de que o socialismo, o comunismo soviético, cubano, da Cortina de Ferro, da China, eram igualmente demoníacos.

O Golpe Militar de 1964 foi, por causa da modificação da teologia política evangélica, apoiado pela maioria dos evangélicos brasileiros. Ao mesmo tempo, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, que contou com a participação massiva dos evangélicos negros daquele país, quase não encontrou reverberação no Brasil, visto haver pouca liberdade de expressão. A luta antirracista, por exemplo, era considerada pelo Regime Militar uma ideia esquerdista que visava dividir os brasileiros.

O engajamento político evangélico e o seu alinhamento com o Macartismo tornou parte do imaginário evangélico brasileiro, conforme assinala o rigor contra políticas e políticos de esquerda, a antipatia contra movimentos de denúncia e luta contra a desigualdade e o reforço da moralidade sexual. Além disso, a dedicação ao trabalho, a preservação do que desde então se chamava “família tradicional” e o apreço pelos movimentos moralistas/moralizantes como a TFP (Tradição, Família e Propriedade) aumentou o abismo entre grande parte dos evangélicos brasileiros e a nascente teologia latino-americana. A transformação do catolicismo, por influência dos resultados do Concílio Vaticano II e da Teologia da Libertação, exerceu pouco impacto no protestantismo brasileiro, fortemente anticatólico e em grande medida impermeável às preocupações sociais dos movimentos cristãos comprometidos com o fim da pobreza, preconceito e colonialismo.

A revivência do antiesquerdismo: a teologia política do bolsonarismo evangélico

O bolsonarismo como movimento político encontrou espaço para o seu crescimento na grave crise política e econômica que se desdobrou nas manifestações de 2013. O recrudescimento das insatisfações populares se desdobraram no apoio à Operação Lava-Jato e no movimento de extrema direita liderado por Jair Messias Bolsonaro. Deputado do baixo-clero, Bolsonaro serviu de catalisador para o antipetismo e a negação da política, advinda do desencantamento com a política partidária tradicional por causa do fracasso de popularidade do Governo Temer e dos escândalos de corrupção. Ao estabelecer uma polarização com as forças de esquerda, capitaneadas pelo petismo, Bolsonaro se uniu aos principais agentes antissistêmicos e venceu as eleições diante da prisão de Lula, da guinada do PSDB à direita, do desencantamento dos brasileiros com toda a classe política. Mesmo sendo um político tradicional e vinculado ao Centrão, a virulência de Bolsonaro serviu às expectativas de mudança, ainda que seus arroubos manifestassem claramente seu descompromisso com a democracia e até mesmo com os pactos civilizatórios fundamentais. Apoiado pelo Lavajatismo, assumindo o discurso anticorrupção e defendendo claramente o Golpe Militar de 1964, Bolsonaro venceu as eleições.

A principal força política identificável a eleger Bolsonaro foi, no entanto, o movimento evangélico brasileiro. Bolsonaro, com habilidade, atraiu o apoio de grupos evangélicos conservadores nos costumes, desencantados com o petismo e em crise financeira por causa das crises sucessivas que atingiram sua membresia. Bolsonaro foi capaz de reativar o anticomunismo dos evangélicos, gestado na Guerra Fria sob a influência norte-americana. Os evangélicos, por sua vez, receberam com entusiasmo a oposição de Bolsonaro ao feminismo, à ampliação de direitos para a população LGBTQIA+, à legalização das drogas e à corrupção. Doutrinados a valorizarem arranjos familiares heteronormativos, estáveis e compostos por homem, mulher e filhos, os evangélicos se sentiram representados por aquele que se apresentava como defensor da família. A expressiva votação dos evangélicos ajudou muito na vitória de Bolsonaro nas eleições presidenciais.

Bolsonaro ampliou ainda mais a sua base de apoio junto aos evangélicos ao tomar medidas que apelavam diretamente a esse grupo. No dia de sua eleição, o presidente eleito se apresentou em público em rede nacional recebendo uma oração do pastor Magno Malta. Ele foi agradecer a Deus pela eleição na Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, pastoreada pelo pastor Silas Malafaia. Ele atraiu o Lavajatismo, que contava com representação e apoio evangélico na figura do Procurador Deltan Dallagnol, para seu governo, oferecendo o Ministério da Justiça ao juiz Sérgio Moro.

O lugar privilegiado dos evangélicos no governo Bolsonaro, e a adoção de valores evangélicos tradicionais pelo bolsonarismo, provocou um duplo efeito. Primeiro, grande parte dos evangélicos brasileiros abriu mão de seu compromisso, que já era eventual, com a dignidade dos povos tradicionais, com alguma luta antirracista, com algum movimento de dignificação das mulheres, com algum compromisso com a erradicação da pobreza.  Para eles, essas, por serem bandeiras da esquerda, eram dispensáveis. Segundo, o surgimento de um messianismo político, que provocou uma aceitação dos excessos do bolsonarismo sob a desculpa de que ele é um movimento divino, que purifica o Brasil da iniquidade e defende os evangélicos.

A adesão de grande parte dos evangélicos ao bolsonarismo também provocou várias mudanças na teologia evangélica, especialmente na teologia política. São elas:

-  A participação de grupos mais neutros politicamente em campanhas e na política partidária: os evangélicos brasileiros, especialmente os grupos que mantém em suas declarações de fé a separação entre Igreja e Estado, passaram a participar ativamente da política partidária. A tentativa de Bolsonaro de fundar o partido “Aliança Brasil” contou com a adesão de evangélicos, que chegaram a ceder igrejas para coletarem assinaturas que referendassem a fundação do partido. Nem mesmo o fato de o número do partido, 38, remontar a um calibre famoso de arma de fogo, e o símbolo do partido ter sido representado em uma escultura feita com balas de fuzil, trouxe comedimento aos evangélicos que se tornaram entusiastas da iniciativa que acabou fracassando.

Igrejas como a Igreja Presbiteriana do Brasil, Igreja Batista e Igreja Assembleia de Deus passaram a ter pastores ocupando cargos. A líder da iniciativa de subversão das políticas de direitos humanos implementadas no Brasil até o governo Bolsonaro foi Damares Silva, uma pastora da Igreja Quadrangular. As manifestações promovidas por Bolsonaro em domingos e feriados cívicos passaram a ser constantemente anunciadas em Igrejas, que estimularam sua membresia a participarem. A transformação é significativa, porque antes, apenas igrejas neopentecostais tinham o intento de participarem da política partidária. Hoje, igrejas tradicionais, conservadoras, se lançaram ao exercício de atividades partidárias, com muito menos contenção.

- O messianismo político como extensão da teologia do domínio: a teologia do domínio era parte do ideário neopentecostal e pentecostal. Ela partia da premissa de uma oposição fundamental entre Deus e o diabo, entre os filhos da luz e os filhos das trevas, e a necessidade da participação dos crentes, por ações espirituais, para demarcarem territórios e estabelecerem o senhorio de Cristo. A Marcha para Jesus é o evento mais singular neste afã, que representava a declaração profética de que o Reino de Deus prevaleceria onde os cristãos colocassem os seus pés.

O advento do bolsonarismo e o seu acolhimento em ambientes evangélicos gerou uma transformação. Agora, a narrativa envolve o plano divino de preservar a vida de Bolsonaro de uma facada. Bolsonaro teria a vida salva para ser eleito e para transformar o Brasil em um país evangélico, em que o cristianismo prevalece diante dos ataques do diabo. O diabo seria aliado das esquerdas, que promoveriam o mal: drogas, sexo, homossexualidade, ideologia de gênero, pedofilia e erotização de crianças. Este combo delirante está no pano de fundo dos recentes discursos de Bolsonaro, no quais as eleições são vistas como uma luta do bem contra o mal em que ele estaria ao lado da maioria, dos que tem Deus no coração. Concomitantemente, ele utiliza o apoio de Anitta a Lula para reforçar a dicotomia moral e espiritual, e reforçar os vínculos com os evangélicos mais estritos.

- A nova teologia da doença: a pandemia de COVID-19 serviu para demonstrar que Bolsonaro é, de fato e sistematicamente, optante pela morte. Havendo informações científicas sobre a doença, vacinas e medidas para a proteção da população, como máscaras e isolamento, Bolsonaro defendeu remédios ineficazes, criticou o uso de máscaras e sabotou o isolamento. Ele teve como sócios muitos grupos evangélicos, que serviram de caixa de ressonância para suas teses.

Os evangélicos brasileiros passaram pelas epidemias de cólera, varíola, febre amarela e gripe espanhola. Sempre foram conhecidos pelo suporte aos doentes, pelo apoio às medidas sanitárias e pela cessão dos templos às autoridades sanitárias. Bolsonaro conseguiu tornar os evangélicos, em grande parte, sócios de sua necropolítica.

- A nova soteriologia (não é mais apenas Jesus quem salva, mas é a escolha politica): a maior característica do movimento evangélico era a ideia de que apenas Jesus salva, e o faz mediante a confissão e profissão de fé de um convertido que se arrepende de seus pecados e pede a salvação a Cristo. Cristo é, nesta soteriologia, o único e suficiente salvador.

O advento do bolsonarismo e a adesão de muitos evangélicos a eles fez surgir outra condição para a salvação. Teólogos de Igrejas Tradicionais, como Jonas Madureira, Augustus Nicodemus, Hernandes Dias Lopes, Franklin Ferreira, e líderes religiosos como André Valadão e Edir Macedo afirmam que não é possível ser cristão e ser de esquerda. Além dessa posição transformar a direita e o capitalismo como únicos sistemas político-econômicos compatíveis com o cristianismo, ela inventa uma nova condição para o pertencimento ao cristianismo – e, por consequência, à salvação em Cristo.

Neste último caso, todos os versículos bíblicos que falam de misericórdia, amor, moderação e justiça, transgredidos na história exploratória do capitalismo que destruiu África, Ásia e América Latina, são apagados em nome de uma agenda que coincide com a de Bolsonaro: combate às drogas, aborto e homossexualidade. Ao fim, pode destruir a vida de quem for, pode explorar predatoriamente quem for, desde que se controle a genitália e as substâncias que entrem no corpo, desde que se deixe as crianças nascerem – mesmo que essas crianças cresçam na violência e tenham uma vida dura e curta. Afinal, foram banidas da preocupação dos evangélicos a transformação da vida dos que vivem em precariedade: isso seria resultado tão-somente da falta de mérito e de esforço, e não de um sistema político e econômico que impede a ascensão social, política e econômica dos pobres, que sonega a eles a dignidade.

O que se pode ver, portanto, é que o discurso bolsonarista não se limita a dizer que Joãozinho continuará a ser Joãozinho. O pobre continuará pobre. A mulher continuará sendo violentada, e continuarão a ser investigadas quanto à sua culpa nos estupros que sofrem. Os homens continuarão batendo nas mulheres. Os doentes continuarão ouvindo: “todo mundo morre um dia”. Os trabalhadores em condição análoga à escravidão continuarão, em nome da “desburocratização”, a trabalhar em troca de comida, vivendo em alojamentos imundos. Homossexuais continuarão a sofrer violência. Políticos do Centrão, apoiados por Bolsonaro, continuarão impunes. Mas no que cabe aos evangélicos, eles continuarão respondendo a todos esses problemas dizendo que a salvação em Cristo tornará isso suportável. E agora, com o incremento do bolsonarismo, e a adesão ao mesmo, serão parte dos políticos corruptores (como os pastores do MEC), chamarão Bolsonaro de mito e dirão que as esquerdas, que defendem a mudança deste quadro, levam as pessoas para o inferno. Grande parte do movimento evangélico brasileiro se tornou parte da destruição da cidadania, aliada do golpe e base de apoio de um presidente desequilibrado e mal.