Um ano depois do 8 de janeiro

O distanciamento histórico, ao invés de obnubilar os acontecimentos, normalmente traz maior clareza sobre os fatos e atores históricos. Com o 08/01 não é diferente. Seja pela crescente conscientização de que boa parte do bolsonarismo não condenou os atos antidemocráticos, seja pela CPMI que, uma vez instaurada a pedido da oposição, cujo protocolo foi encampado pelo deputado depilador de si mesmo, ou “de mim” (na nova versão do vernáculo editada por Sérgio Moro), estampou de modo inequívoco, todos os meandros daquele insuportável dia.

Passado um ano, é preciso que os democratas vejamos qual foi o espaço dado, a janela aberta, para que figuras da extrema-direita, como o candidato Derrotado, migrassem da excentricidade para uma representativa ovação. É preciso repisar que o lawfare empregado, que a espetacularização do Judiciário, fraturaram o povo brasileiro e a divisão de poderes que rege o estamento público, tal qual preconizada por Montesquieu. Pessoas corretas como o Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo não suportaram o peso da indignidade que lhes foi posta, imposta, impostoramente! Mesmo assim os acordos de lawfare continuam sendo celebrados, assim como o intercâmbio de parte das Procuradorias com organismos internacionais de “combate à corrupção”. Os mesmos que, ao que tudo indica, parecem vendados, impedidos de enxergarem o “negócio do Jair”.

Torna-se necessário também lembrar que a democracia é um construto frágil, que deve ser defendida sempre que a “cadela do fascismo” que está sempre no cio (como nos lembra Bertold Brecht) se aproximar com os dentes à mostra. Há um ano atrás tivemos uma mostra inequívoca disso, quando os Palácios que representam, simbolizam, materializam este ideal de Estado que temos, foram invadidos, vandalizados. Por esta razão é importante não esquecer todo político que fez questão de ficar ausente da grande aliança construída pela defesa da democracia. Na hora em que o Brasil da Nova República mais precisou, teve gente que se esquivou ou que fez ainda pior: migrou para o lado com aspirações ditatoriais. Líder que coloca o sentimento pessoal acima do povo, não está credenciado para administrar uma nação tão especial como o Brasil.

Um ano depois é importante refletir sobre o papel da mídia em todo este processo de polarização e de esgarçamento social. É primordial que observemos os diferentes tratamentos em manchetes e abordagens, que perpetuam as condições socioeconômicas, os preconceitos, privilegiando certas castas. As marcações ao governo petista e o abrandamento editorial no tocante ao fascismo devem ser sublinhadas. Cabe-nos sempre indagar: por que esta notícia foi selecionada e não outra? Por que esta forma de apresenta-la e não outra?

Após um ano importa notar e anotar todos os líderes que não condenaram os atos antidemocráticos, uma vez que razões e tempo para fazerem, tiveram de sobra. Se não se expuseram na condenação, é porque seguem concordando com aquele absurdo. E se concordam, talvez caiba apurar se de alguma forma não apoiaram os atos golpistas, ou, quem sabe, urdindo algum novo plano golpista.

Por fim, é imperioso lembrar daquele atentado à democracia especialmente porque brasileiros e brasileiras foram torturados e mortos pelo Regime que nos foi imposto e que nunca fez dieta na sua sanha de produzir mártires pela democracia. Como nos adverte Paul Ricoeur, esquecer a História é condenar seus atores, especialmente suas vítimas, a uma nova morte. Trata-se da violência à memória social, tão comum aos simpatizantes das Ditaduras. É preciso lembrar para não esquecer; é necessário lembrar para nunca mais acontecer.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.

Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas. Contato: sdusilek@gmail.com