Vai Na Fé. Entre o desconhecimento e a intencionalidade

Vai Na Fé. Entre o desconhecimento e a intencionalidade

Recentemente, estava com minha família em um restaurante que transmitia a nova novela das 19h da Globo. Me chamou a atenção, pois a cena retrata um culto de uma igreja evangélica. O louvor escolhido é “Vencendo vem Jesus”, com um instrumental perfeito e uma afinação impecável.

Enquanto eu ainda assimilava a cena, minha esposa interrompeu meu raciocínio com um comentário que só quem tem ouvidos afinados pode fazer, “até parece que tem igreja com esse tipo de back”. Aquele comentário me colocou novamente no lugar de estranhamento. Roy Wagner afirma: “o antropólogo usa a noção de cultura para controlar suas experiências em campo, essas experiências, por sua vez, passam a controlar sua noção de cultura”[1].

Escrita por Rosane Svartman, Vai na fé tem como protagonista Sol, uma mulher negra, que sobrevive vendendo marmitas no centro da cidade, casada e mãe de dois filhos. A história da personagem é marcada por um passado no baile funk, mas no presente ela canta no coral da igreja do subúrbio.

Independente da narrativa que a trama constrói, o trabalho de pesquisa para a escolha da intérprete principal é bem feito. Em pesquisa recente do Latinobarómetro observamos que 62% dos evangélicos têm entre 16 e 44 anos[2]. A atriz Sheron Menezzes, também representa uma religião majoritariamente feminina, sendo que 58% dos frequentadores dos templos são mulheres, destes 59% dos frequentadores de templos evangélicos são pretos ou pardos.

Mas os acertos param por aqui. A escolha de aproximação da Globo do público evangélico tem como caminho uma abordagem mais contextualizada e moderna. A estratégia não é por acaso, a Globo parece querer ganhar espaço junto a um público cada vez mais cobiçado pelas emissoras de televisão.

A protagonista neste aspecto é sem dúvida a Record, a TV do bispo modificou o horário de atenção ao público evangélico, que anteriormente estava "representado” na telinha aberta aos sábados de manhã durante o Show da Fé ou nas madrugadas de batalha espiritual e empreendedorismo gospel. No entanto, estes programas falam mais sobre as denominações e seus líderes religiosos do que sanam uma necessidade de consumo de conteúdo. A tentativa da Record é assertiva quando retrata narrativas bíblicas por meio de tramas bem elaboradas, efeitos visuais e principalmente apelos de fé com versículos bíblicos passando durante a transmissão.

Gutierres Fernandes Siqueira ao abordar a forma de representação dos evangélicos em teledramaturgias, em seu livro “Quem tem medo dos evangélicos”, aponta a incapacidade e o preconceito de retratar os evangélicos. Segundo ele, em tais representações “o evangélico não raro é um carola preconceituoso, ignorante e falso”[3], retratando assim um preconceito religioso da elite cultural contra os evangélicos.

Mas onde isso é demonstrado em Vai na Fé? A trama apresenta uma versão abrasileirada do gospel negro típico dos Estados Unidos, onde os louvores são entoados em formato de coral, sobressaindo vozes. Erro fatal, frequentadores de templos evangélicos sabem a importância da presença do instrumental, da bateria da guitarra distorcida e principalmente da intervenção do líder de louvor.

Outro aspecto equivocado é a representação de espectadores, pessoas vestidas com camisetas sociais, de colarinho fechado, crucifixos católicos e um linguajar quase ufanista, com expressões angelicais. passou longe da realidade neopentecostal, onde os louvores são misturados com línguas estranhas, choro e mãos levantadas.

Apesar de não ser a intencionalidade da emissora criar uma novela evangélica, a aproximação é temerária. Falha na construção de personagens, é preconceituosa e distância o público evangélico. Basta saber se é apenas desconhecimento ou representação estereotipada.

Referências:

[1] WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. p. 39,  São Paulo: Cosac Naify, 2010.

[2] Disponível em: https://www.cooperativa.cl/noticias/site/artic/20180112/asocfile/20180112124342/f00006494_religion_chile_america_latina_2017.pdf acessom em 17/12/23.

[3] SIQUEIRA, Gutierrez Fernandes, Quem tem medo dos evangélicos? p. 27, 2022.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Vinícius Gomes é cristão, possui MBA em Gestão da Educação Pública,  Licenciatura em História e atualmente é Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Estado de São Paulo. Dedica-se a pesquisar as relações entre os Bolsonaristas e os evangélicos, bem como sua inserção no mundo digital.