Vozes divergentes: Evangélicos no debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil

Vozes divergentes: Evangélicos no debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil

Em artigo anterior, mencionei a possibilidade da ministra presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) votar pela descriminalização do aborto, e no último dia 22 a votação se concretizou de fato.

Prestes a aposentar, Rosa Weber deu seu voto e argumentou que a criminalização fere direitos fundamentais das mulheres, como a liberdade de decidir sobre seus próprios corpos e à auto determinação pessoal.

O voto despertou grande debate, sendo o assunto mais comentado na semana nas redes sociais. Muitos representantes evangélicos que seguem a linha mais conservadora se posicionaram veementemente contra a descriminalização.

Porém, ao contrário do que muitos pensam, há também grupos de mulheres evangélicas que são favoráveis à decisão de descriminalização do aborto, e segundo a antropóloga Débora Diniz, coordenadora da Pesquisa Nacional do Aborto de 2025, 25% das mulheres que abortam são evangélicas e 56% são católicas. A pesquisa conclui que o aborto é um fenômeno bastante comum no Brasil, uma vez que o número de mulheres que já fizeram aborto é bastante alto, sendo uma a cada cinco mulheres brasileiras segundo levantamento da pesquisa.

Embora o debate envolva temas relacionados à teologia, seguimentos bíblicos ou até bioética, é também um tema bastante conveniente para levantar polêmicas e mobilizar medos e afetos da população. É muito comum nas redes sociais, a publicação de conteúdos que simplificam a questão, e criam alarde através da apelação e do medo, como por exemplo vídeos de fetos sendo retirados do útero com rostos de bebês tristes, ou comentários como “a esquerda quer que a própria mãe se torne a assassina”.

Pois, afinal, quem é a favor do aborto? Ninguém é de fato a favor do aborto, nenhum grupo progressista acha legal ou divertido abortar, como tentam convencer os evangélicos conservadores. Quando Damares Alves afirma em suas redes sociais que aborto “é assassinar uma criança enquanto dorme” (frase publicada em seu instagram pessoal), a intenção claramente é criar polaridade, pânico, e vilanizar todo e qualquer grupo que seja a favor, como se não fosse uma questão de saúde pública, e sim de mal caráter.

Essa estratégia de simplificação de temas complexos é evidentemente uma forma de criar um estigma de “bem” e “mal”, manipulando opiniões a partir de uma banalização e superficialização de um tema tão multifacetado.

Pessoas que são a favor do aborto são na verdade a favor da dignidade da mulher que aborta, do direito à condições melhores de atendimento diante de um fato que existe: o aborto é real e ser contra ele não vai fazer com que ele desapareça.

O aborto acaba sendo um tema bastante propício para evangélicos conservadores criarem polemicas, uma vez que mobiliza outros temas que compõe o campo moral como a infância, a família, a reprodução e a sexualidade. São temas que facilmente mobilizam a população, afinal, quem é contra os direitos da criança? Acredito que ninguém. O que está em disputa é o sentido do termo “direito”. E a partir do momento que acionar estes termos se tornou uma forma fácil de sensibilizar as pessoas, criou-se uma verdadeira arena de disputa em torno do Estado, uma vez que é através da política que agendas morais passam a se concretizar.

O que é importante, é perceber o quanto o crescimento e o vigor com que a Frente Parlamentar Evangélica vêm atuando na esfera política está diretamente atrelada ao avanço das pautas progressistas relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos e a questões de gênero, percebidas genericamente por setores evangélicos como uma "ameaça a família tradicional".

Esse cenário foi se constituindo justamente como uma reação e resistência às mudanças socioculturais, legais e políticas que convergem para o reconhecimento dos direitos das mulheres e das pessoas LGBTI no Brasil, principalmente a partir da década de 1990, quando o país passa por um cenário de criação de políticas públicas voltadas para a priorização da diversidade e para a inclusão de minorias historicamente marginalizadas.

Nesse contexto, o cenário nacional se torna propício à ampliação dos direitos e à instituição de um pluralismo cada vez mais difuso em concordância com as novas diretrizes estabelecidas internacionalmente voltadas aos direitos humanos.

Todos os avanços sempre encontram reações no seu caminho, porém, recuar nunca é uma opção. O voto de Rosa Weber não representa nenhuma determinação definitiva, e ainda terão muitos conflitos pela frente, porém, o debate está avançando. A história sempre caminhou dessa forma, a passos lentos, mas sem perder o horizonte de utopias de uma sociedade mais justa e digna para todos, e nesse caso, principalmente para as mulheres.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Manuela Löwenthal é Doutoranda em Ciências Sociais pela UNIFESP, pesquisa temas vinculados à Religião e Política no Brasil. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (2012), onde também obteve o título de mestre. É pesquisadora  do projeto Temático "Religião, Direito e Secularismo: A reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo", financiado pela FAPESP.  Atua também como Professora de Sociologia na Rede Estadual Paulista.