Vozes inquietas: As mulheres na Reforma Protestante
Outubro é um mês significativo para o meio protestante e evangélico. É a celebração da Reforma Protestante, tradicionalmente localizada na Alemanha. Todavia, é importante elucidar que o movimento ocorria em diversas partes da Europa e que, além dos aspectos teológicos, havia os aspectos políticos.
No entanto, nas igrejas, púlpitos e demais espaços muito se fala de Martinho Lutero e de outros reformadores fora da Alemanha como Ulrico Zwínglio, John Knox e João Calvino, mas pouco se traz à memória as diversas mulheres que foram parte integrante do movimento da Reforma Protestante, não só na Alemanha. É algo importante de se fazer, ainda que a contragosto dos reformadores, pois eles também reforçavam a submissão feminina e ao cumprimento do papel de esposa e mãe. Por exemplo, John Knox escreveu um tratado sobre o regime de mulheres em 1558, no qual se colocou contrário a qualquer governo por mulheres, pois seria a usurpação da autoridade masculina, e ainda as qualificou como: "fracas, débeis, impacientes, vulneráveis e tolas; e a experiência tem demonstrado que elas são inconstantes, volúveis, cruéis e destituídas do espírito de deliberação e organização" (Knox, 1558).
Portanto, é justamente sobre estas vozes inquietas e insubmissas que escrevo. Todavia, esta escrita é problematizada, pois, infelizmente, informações que temos sobre as mulheres na Reforma Protestante estão diretamente ligadas com sua classe social. São as mulheres ricas, pertencentes às famílias nobres ou ex-freiras que tiveram educação culta, que fazem parte deste movimento. Infelizmente, não temos informações de mulheres pobres atuantes na Reforma e nem como a Reforma impactou a vida destas mulheres. Por isso, toda a história precisa ser analisada sempre em diversos ângulos, e não somente de quem escreve a ‘história oficial’.
Por exemplo, para Katharina von Bora e as outras monjas que fugiram do convento de Nimbschen, a Reforma foi libertadora, pois perceberam que no convento não havia a possibilidade de praticar o amor ao próximo que elas desejavam. Por outro lado, houve mulheres que não quiseram deixar a vida monástica. De acordo com Ulrich (2016), muitas mulheres não desejavam o casamento e nem mesmo a maternidade, estavam acostumadas com a vida monástica e não viam como uma “prisão eterna”, como Lutero argumentava. Para muitas destas mulheres, as alternativas, o casamento e a maternidade, ou retornar à casa dos pais, não eram mais atraentes. Melhor seguir no ambiente monástico, que embora fosse de reclusão, era um ambiente protegido e com oferta de educação, conhecimentos de latim, de música, de medicina, de administração, e não eram tuteladas por nenhum homem.
Por isso, ao falar de algumas mulheres na Reforma Protestante, precisamos estar cientes deste recorte de classe, e compreendermos suas contribuições para um determinado período histórico, e quiçá, seguir na reflexão do próprio lema da Reforma: Igreja Reformada sempre se reformando.
Na Alemanha, a principal reformadora é Katharina von Bora, freira que fugiu do convento de Nimbschen, possuía conhecimentos em latim e medicina caseira, através dos quais atuava no cuidado de pessoas. Ela também era administradora dos bens familiares e foi casada com Martinho Lutero. Katharina também atuava nos debates teológicos ocorridos em sua casa.
Para além de Katharina, temos Catarina Zell, de Estrasburgo. Era uma mulher culta e leitora de Lutero. Foi considerada uma teóloga leiga que escreveu e publicou várias cartas teológicas em forma de panfleto, inclusive comentários sobre os Salmos 51 e 130, e também pregou publicamente por três vezes. Argula von Grumbach, alemã, oriunda de família nobre é reconhecida como a primeira escritora protestante. Escreveu e publicou panfletos defendendo o ideal da Reforma Protestante com conhecimento teológico e citações bíblicas que traduzem a ideia da inclusão e igualdade como apresentados em Joel 2,28 e Gálatas 3,27-28.
Em Genebra, temos Marie Dentiere, uma ex-abadessa e importante teóloga que afirmou que a leitura da Bíblia realizada pelas mulheres as faria descobrir mais as mulheres na Bíblia e que os exemplos destas figuras as fortaleceriam em suas práticas de fé, em suas qualidades, virtudes, pensamentos, ações e conhecimentos.
Dessa maneira, se indicava que a Bíblia apresenta evidências claras de que as mulheres podem interferir e dizer as suas palavras como sujeitas, como teólogas, e não devem ser difamadas, caladas ou deixadas dentro dos armários. Em um de suas cartas à rainha Margarida de Navarra, em defesa das mulheres, ela escreve:
Embora não seja permitido a nós (mulheres) pregar em assembleias públicas e nas Igrejas, não obstante não nos é proibido escrever e admoestar uma a outra com todo o amor. Não somente para vós, senhora, desejei escrever esta carta, mas também comunicar coragem a outras mulheres mantidas em cativeiro, a fim de que todas elas não temam ser exiladas do seu país, parentes e amigos, como eu mesma, por causa da Palavra de Deus. Para que elas possam, de agora em diante, não ser atormentadas e afligidas em si mesmas, mas antes, rejubiladas, consoladas e estimuladas a seguir a verdade, que é o evangelho do Senhor Jesus Cristo. Até agora, este evangelho tem estado escondido, de sorte que ninguém ousa dizer uma palavra a respeito dele, e apareceu que as mulheres não deviam ler e entender nada dos escritos sagrados. É esta a causa principal, minha senhora, que me compeliu a escrever a V. Excia., esperando em Deus que no futuro as mulheres não serão tão desprezadas como no passado… em todo o mundo (DENTIERE apud DOUGLASS, 1995).
Temos também a própria rainha francesa, Margarida de Navarra, que atuava na propagação dos ideais da Reforma por meio de poesias e contos com intuito de que seus escritos alcançassem um público maior (ainda que restrito, já que a leitura não era acessível a todas as pessoas). Ela fez de seu reino um refúgio para os reformadores perseguidos. Foi um importante apoio para a reforma de Calvino em Genebra, inclusive o repreendeu pela condenação e morte de Miguel de Serveto.
Por fim, mas sem esgotar as vozes na Reforma, temos Rachel Specht, calvinista inglesa, que escrevia poesias para divulgar o seu pensamento teológico. Além disso, ela utilizou a parábola dos talentos para defender o direito das mulheres. Ela argumentava que as mulheres receberam corpo, alma e espírito de Deus. A alma, segundo ela, era o lugar onde habita a mente, a vontade e o poder. Para que Deus daria todos estes talentos a elas se não para serem usados? Não usá-los seria uma irresponsabilidade.
São algumas mulheres que, dentro do contexto do século 16, foram vozes inquietas e insubmissas que ousaram a escrever, a argumentar e fazer teologia. E o meu esperançar é que tantas outras mulheres sigam fazendo teologia, teologia acadêmica, bíblica, sistemática, contextual, mas que extrapolem estes espaços e se encarne na vida das pessoas, de todas elas. Sigamos sendo vozes inquietas!
Referências:
ALMEIDA, Rute Salviano. Uma voz feminina na Reform: A contribuição de Margarida de Navarra à Reforma Religiosa. São Paulo: Hagnos, 2010.
DOUGLASS, Jane Dempsey . Mulheres, Liberdade e Calvino: o ministério feminino na perspectiva calvinista. Minas Gerais: Didaquê, 1995.
ULRICH, Claudete Beise. As mulheres na Reforma Protestante: auxílio homilético, 2016. Disponível em: https://www.luteranos.com.br/textos/mulheres-na-reforma. Acesso em 15/10/2023.
KNOX, John. The first blast of the trumpet against the monstruous regiment of women (1558), in: The works of John Knox, ed. David Laing, v. IV, p. 366-373
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Sue’Hellen Monteiro de Matos é Mulher EIG SP; Doutora em Ciências da Religião (UMESP); Graduada em Teologia (FATIPI), Docente de Teologia na UNIMES; Reverenda da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil; Associada da ABIB.