Movimento negro evangélico - um raio em céu azul?

Movimento negro evangélico - um raio em céu azul?

Existe uma religião dos negros no Brasil? Em outros termos, para ser negro “de verdade”, há alguma identidade religiosa mais “adequada”? É possível ser negro e ser evangélico sem que essa última pertença impeça o negro de se afirmar racialmente? A pergunta soaria despropositada se não estivéssemos numa era de redescoberta das diferenças, tão propícia para escorregões aqui e acolá. Entre 2019 e 2021 investiguei o movimento negro evangélico no Brasil, pesquisa de que dou notícias aqui.

Raça e religião no Brasil - mudanças

Nos últimos anos, nosso renitente racismo se tornou um problema público cada vez mais reconhecido e combatido, pautado nas mídias sociais, no mercado, na produção cultural e no cotidiano. Além disso, desde os anos 1990 um sem fim de leis, programas e políticas de promoção da igualdade racial se estabeleceu nas agendas governamentais sob os termos de ações afirmativas e dispositivos antidiscriminatórios. Nada disso, porém, se fez sem que paulatinamente se consolidasse uma política de identidade que serve de esquadro ao antirracismo organizado.

Desde sua reorganização, no fim da década de 1970, o movimento negro passou a enfatizar o traço afro-brasileiro e, desde então, estabeleceu forte aliança com os cultos de matriz africana. Eles próprios, aliás, também acentuaram o elemento étnico de suas tradições, como exemplifica o movimento de reafricanização dos candomblés, também iniciado nos anos 1970. No entanto, ao mesmo tempo em que os marcadores raciais, o movimento negro e os cultos afro-brasileiros se etnicizavam, nossa demografia religiosa se transformava.

Os cultos afro-brasileiros, minoritários numericamente, se (re)africanizaram nas últimas décadas, mas também se tornaram definitivamente cultos universais, abertos a toda a gente - certamente hoje os terreiros são mais frequentados por brancos e indivíduos de classe média do que jamais foram antes. Em paralelo, após quatro séculos de catolicismo hegemônico, deu-se vertiginoso crescimento evangélico. Resultado? Alcançamos o ápice do acúmulo antirracista pós-Abolição ao mesmo tempo em que nos transformamos em um país de nova paisagem religiosa; nunca tivemos, em simultâneo, tantos indivíduos autodeclarados evangélicos e pretos ou pardos (somados na categoria “negro” pelo IBGE), nem tamanho contingente de negros evangélicos.

Naturalmente, os reclamos mais essencialistas comparecem com as mudanças. Os negros evangélicos são, volta e meia, considerados castrados em seu processo de afirmação racial, afinal não seriam, em tese, cultores de uma identidade etnicamente referenciada nos espólios culturais de uma monolítica e mitológica “África”, e ainda seriam submissos a um pastorado politicamente conservador. Aos negros evangélicos faltaria “consciência racial”, disseram alguns analistas sociais. A força inédita do antirracismo no Brasil, portanto, se daria à revelia da conversão em massa de pretos e pardos ao protestantismo, religião desmobilizadora e “embranquecedora”.

Mas se é assim, então por que existe um movimento negro evangélico? Seria um raio em céu azul?

Movimento negro evangélico - o que é e o que faz

Parido no entre-décadas de 1960 e 1970, sob a influência da teologia negra e da participação da black churches na luta pelos direitos civis nos EUA, o antirracismo evangélico brasileiro teve diversos momentos de emergência, retração e reemergência pública. O mais profícuo desses momentos é o atual, com o benefício da época, claro, pois além da grande base social de negros evangélicos, há a forte problematização pública do racismo na sociedade contemporânea, um fenômeno global. De fato, a reemergência pública do movimento negro evangélico não é temporã, mas historicamente provável e um tanto quanto óbvia como ponto de cruzamento de processos de média e longa duração já citados: o crescimento evangélico, a politização da religião, a afluência de negros às igrejas pentecostais, a ascendência do movimento negro, a crescente problematização pública do racismo e tudo isso na esteira de nossa redemocratização.

Esse movimento negro evangélico se constitui como um conjunto de grupos e indivíduos evangélicos que combatem ao racismo em suas diversas formas, em suas igrejas e na sociedade em geral, com base em sua identidade religiosa. Me refiro a grupos paraeclesiástico como Rede de Mulheres Negras Evangélicas, Movimento Negro Evangélico (MNE), Coletivo Zaurildas, Discipulado Justiça e Reconciliação, Cuxi, mas também eclesiásticos como Pastoral Rosa Parks da Igreja Batista Coqueiral (PE), Pastoral da Negritude da Igreja Batista do Pinheiro (PB), Fórum de Consciência Negra da Igreja Batista de Água Branca (SP), Pastoral Metodista de Combate ao Racismo, dentre outros.

O repertório de ações é variegado, vai das ações mais autorreprodutivas às mais públicas. Empreendem campanhas virtuais de sensibilização racial; realizam fóruns e seminários; encontros de “acolhimento”; cultos pelo Dia da Consciência Negra; vigílias em praças e ruas; promovem cursos de teologia negra; publicam livros, cartilhas e estudos bíblicos sobre racismo; lançam podcasts; publicam na imprensa; realizam intervenções artísticas no espaço urbano; convocam atos de protesto contra o racismo e integram articulações de movimentos sociais como a Coalizão Negra por Direitos.

O que mais me surpreendeu, porém, foi verificar o engajamento de ativistas negros evangélicos na defesa dos cultos afro em situações de intolerância religiosa. Enquadrada estrategicamente por suas vítimas como “racismo religioso”, a intolerância religiosa, no mais das vezes, é promovida por grupos evangélicos fundamentalistas. Nessas situações, grupos do movimento negro evangélico, regra geral país afora, ficam ao lado das comunidades de terreiros contra seus irmãos de fé fundamentalistas e essa solidariedade às vítimas, em que pese a saia justa, se tornou central na agenda dos evangélicos antirracistas.

Também identifiquei que os ativistas buscam associar sua fé à sua identidade racial, consolidando uma identidade negra evangélica legítima e coesa por meio de operações de racialização da fé. Nesse sentido, um front é a produção de memória, evidente quando os ativistas recuperam e valorizam ícones negros da história do protestantismo como Martin Luther King Jr e Nelson Mandela. Outro gesto é quando definem a tradição judaico-cristã como africana e/ou afro-asiática e destacam que as personagens bíblicas, inclusive Jesus de Nazaré, eram negras, tudo isso mobilizando argumentos da teologia negra.

Além disso, é notável o uso de elementos religiosos como suporte para significados políticos e traduções simbólicas. Pude observar tal uso quando ouvi um ativista negro evangélico citar seu ingresso na militância antirracista como um “batismo negro”, metaforizando sua transformação pessoal como o principal rito de passagem dos cristãos. De semelhante modo, na Nossa Igreja Brasileira, por exemplo, ouvi a referência aos chamados “pequenos grupos” (de reunião doméstica dos fiéis) como “pequenos quilombos”. Em outros momentos, observei negros evangélicos realizarem orações em gratidão a Deus por sua “ancestralidade”, pois ele teria inspirado a resistência dos escravizados. Vale lembrar que, diferente das religiões afro-brasileiras, o monoteísmo iconoclasta dos protestantes não os permite a prática do culto à ancestralidade e a comunicação mediúnica. Entretanto, ao filtrarem práticas e símbolos afro-brasileiros, eles incorporam uma cultura da ancestralidade, ilustrada pela prece de gratidão. Há assim um vasto jogo de dosagens, filtragens e ressignificações pelo qual os ativistas negros evangélicos racializam suas práticas religiosas e as autenticam como legitimamente negras para si, para os outros evangélicos e para o movimento negro secular. O que antes havia de branco em sua experiência religiosa, agora se enegrece.

Conclusões

Sabe-se lá por que diabos, mesmo o avanço dos grupos oprimidos tropeça em reificações e estereótipos que atravancam alianças e excluem possibilidades de desdobramento dos indivíduos no exercício de suas liberdades e na reivindicação por igualdade. De repente, emprestando a metáfora de Weber, certa política de identidade, quando estreita demais, se arremeda mais a uma rija crosta de aço sobre os indivíduos. Recordo o brasilianista John Burdick, pioneiro nos estudos sobre identidade racial, relações raciais e antirracismo no meio evangélico ainda nos anos 1980: o diálogo entre o movimento negro secular e o povo negro evangélico é relevante e pode ser politicamente produtivo para o Brasil. Mas esse diálogo requer de um menos preconceitos e de outro que não se deixe mutilar para ser aceito, afinal de contas, ser negro e ser evangélico não é exceção no Brasil, mas cada vez mais é a regra.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Vítor Queiroz de Medeiros, cientista social, mestre e doutorando em Sociologia (USP). Integra o Projeto Temático Pluralismo Religioso e Diversidades no Brasil Pós-Constituinte (CEBRAP/FAPESP) e o Observatório da Religião e Interseccionalidades (CEBRAP). Recebeu, em 2021, o Prêmio Lélia González de Manuscritos Científicos Sobre Raça e Política da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política).