Narcomilícia evangélica? A polêmica no judiciário, entre religiosos e na academia

Narcomilícia evangélica? A polêmica no judiciário, entre religiosos e na academia
Ministro Gilmar Mendes.

No livro “Oração de Traficantes” publiquei o resultado de uma etnografia de longa duração realizada em favelas no Rio de Janeiro. Nela apresento a transformação da hegemonia católica nesses territórios para uma presença pentecostal verificável em larga escala, presente no número de templos e de fieis, em comércios com nomes bíblicos, na política e cultura locais, nas pinturas em muros, para citar alguns exemplos. Fato social importante foi também a mudança no sistema de crenças de traficantes locais, antes majoritariamente ligada ao catolicismo popular ou à umbanda e candomblé e, a partir, principalmente dos anos 2000, ligada ao universo religioso e moral dominante nas favelas, o pentecostalismo. 

Sendo assim, a conversão de traficantes em presídios, o pertencimento deles a lares evangélicos e a própria questão cultural do entorno produziu um fenômeno novo: a aproximação de traficantes de redes evangélicas nessas localidades. Como assim? Eram/são traficantes que continuam na atividade criminosa, mas frequentam cultos, contribuem com campanhas de igrejas, pedem orações. Muitos se dizem “super homens”, pois se sentem dominantes no crime ao mesmo tempo em que gozam de passagem social ao frequentarem esse universo sagrado evangélico. Em minha pesquisa, não eram considerados como evangélicos por aqueles pastores, missionárias e fiéis frequentadores e integrantes das comunidades religiosas. Eram considerados, no mais das vezes como em “processo de santificação”. Milicianos, pela integração de vários deles a outros grupos em termos sociais e geográficos (muitos nordestinos), são bastante identificados ao catolicismo, embora haja também um crescimento daqueles que se identificam com o pentecostalismo neste grupo criminoso. Como vimos, a presença desses criminosos em comunidades religiosas é muito controversa e alvo do estabelecimento de muitas distinções e exercícios de limpeza moral. 

O sensacionalismo de Gilmar Mendes ao afirmar que o Rio de Janeiro estaria dominado por narcomilícias evangélicas já foi exercido por jornalistas e até pesquisadores pouco experientes. Contudo, o caso ganhou grande repercussão dado o peso social e político do pronunciamento de um ministro decano da mais alta corte nacional. Surpreendentemente, para alguns, o pastor presbiteriano e ministro da mesma corte, André Mendonça, apressou-se em usar de seu cargo e do peso de sua voz para fazer o que muitos evangélicos gostariam de fazer que é dizer: ser evangélico e ser criminoso não combina. E nisso, embora eu não seja religiosa, nós concordamos. Mas não me ateria somente ao crime praticado por varejistas na venda de drogas ilícitas. Creio que seja injustificável ser verdadeiramente evangélico e praticar homofobia, ser favorável ou legitimar de alguma forma a escravidão e o racismo, estar ao lado de mercadores da fé que lucram sobre a crença e a esperança alheias. 

Com tudo isso, creio que o uso indiscriminado da alcunha “narcotraficantes evangélicos”, “narcomilícia evangélica”, “traficantes evangélicos” busca mais identificar “inimigos número um” a serem combatidos do que entender o fenômeno social em si. Compreendo que os grupos religiosos e sociais principalmente vitimados por esses traficantes nas localidades, usem desse recurso narrativo para chamar ainda mais atenção para o sofrimento e os danos morais, psicológicos e materiais que sofrem. No entanto, o uso generalizado desta terminologia acaba por fixar em um agente o “mal” quando sabemos que o problema social seja da intolerância religiosa, seja das eventuais conexões entre crime e religião não se esgotam e nem foram inventadas por traficantes de drogas ou milicianos em favelas. 

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Christina Vital da Cunha é Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Coordenadora do Laboratório de Estudos em Política Arte e Religião (LePar) Universidade Federal Fluminense. Autora de “Oração de Traficante: uma etnografia” e de “Religião e Política: medos sociais, extremismo religioso e eleições 2014”. Editora da Revista Religião & Sociedade.